Bond apanhou o seu copo e esvaziou-o. Depois, encheu-o novamente. Em seguida disse: — Não estou surpreendido. É a velha questão de pensar que se é o rei da Inglaterra, ou o presidente dos Estados Unidos, ou Deus. O hospício está cheio dessa gente. A única diferença está em que, ao invés de ter sido trancafiado, o senhor construiu o seu próprio hospício e nele se encerrou. Mas por que o fez? Por que o sentar-se aqui, isoladamente, lhe dá a ilusão do poder?
Um sentimento de irritação agitou os cantos daquela fina boca. — Senhor Bond, poder é soberania. O primeiro princípio de Clausewitz era o ter-se uma base segura. Desta avança-se com liberdade de ação. As duas coisas juntas constituem a soberania. Garanti essas duas coisas e muito mais. Ninguém no mundo as possui em tão alto grau. Ninguém pode tê-las. O mundo é demasiado público. Tais coisas apenas podem ser salvaguardadas em segredo. O senhor fala de reis e presidentes. Quanto poder possuem eles? Tanto quanto os seus povos lhes derem. Quem no mundo tem poder de vida ou morte sobre os seus súditos? Agora que Stalin está morto, poderá o senhor citar alguém a não ser eu? E como possuo esse poder e essa soberania? Graças ao isolamento. Graças ao fato de que ninguém sabe. Graças ao fato de que não tenho que dar satisfações a ninguém.
Bond deu de ombros. Depois comentou: — Isto não passa de ilusão do poder, Dr. No. Qualquer homem armado de um revólver tem o poder de vida e morte sobre o seu vizinho. Outras pessoas que não o senhor têm assassinado em segredo e escapado livres. Por fim, geralmente, recebem a retribuição. Um poder mais alto do que o deles é sobre eles exercido pela comunidade. Isto também lhe acontecerá, Dr. No. Digo-lhe que a sua busca de poder é uma ilusão, porque o próprio poder é uma ilusão.
O Dr. No disse serenamente: — Assim também a beleza, senhor Bond. Assim também a arte, assim também o dinheiro. E, também, provavelmente a vida. Esses conceitos são relativos. Sou versado em Filosofa, Ética e Lógica — mais do que o senhor, posso dizê-lo. Mas deixemos de lado esse debate estéril. Voltemos ao meu ponto de partida, com a minha mania pelo poder, ou, se o prefere, pela ilusão do poder. E, por favor, sr. Bond, — viu-se novamente acentuar-se o seu permanente sorriso — não pense que meia-hora de conversação com o senhor alterará os padrões de minha vida. Procure interessar-se, antes, na história de minha luta por, digamos, uma ilusão.
— Prossiga. — Bond olhou para a jovem e os seus olhos se encontraram. Ela levou a mão à boca, como que para esconder um bocejo. Bond sorriu para ela e pensou quanto o Dr. No se divertiria destruindo-lhe aquela pose de indiferença.
O Dr. No disse com benevolência: — Procurarei não aborrecê-lo. Os fatos são muito mais interessantes do que as teorias, não acha? — O Dr. No não estava esperando resposta. Seus olhos agora se tinham fixado na elegante concha que agora tinha vencido metade da janela de vidro, no seio do mar. Algum pequeno peixe prateado mergulhou no abismo negro; uma pequenina luminosidade azul e fosforescente vagueou sem destino. No alto, à altura do teto, aparecia o brilho das estrelas, que resplandeciam através do vidro.
O artificialismo da cena, no interior da sala — as três pessoas sentadas em cadeiras confortáveis, as bebidas no aparador, o luxuoso tapete, as luzes veladas, subitamente assumiram para Bond um tom de comicidade. Mesmo o drama que a situação encerrava, o perigo, eram coisas frágeis em comparação com a progressão da concha do lado de fora do vidro. Supondo-se que o vidro arrebentasse, que as pressões tivessem sido mal calculadas, que a mão-de-obra apresentasse defeitos, ou que o mar resolvesse apoiar-se mais pesadamente sobre aquela tela vítrea?
O Dr. No disse: — Eu fui o único filho de um missionário metodista alemão e de uma jovem chinesa de boa família. Nasci em Pequim, mas no que se costumava dizer ser “o lado errado do tapete”. Eu representava um estorvo. Uma tia de minha mãe foi paga para criar-me. — O Dr. No fez uma pausa. — Nenhum amor, como vê, senhor Bond. Falta de cuidados paternos. — E prosseguiu: — A semente tinha sido lançada. Fui trabalhar em Xangai e envolvi-me com os Tongs e com os seus métodos ilícitos. Gostava das conspirações, dos assaltos, assassínios, incêndios premeditados das propriedades seguradas, pois isso representava para mim a revolta contra a figura do pai que me tinha traído. Gostava da morte e da destruição de pessoas e coisas. Tornei-me adepto da técnica na criminalidade — se desejar usar este nome. Depois, surgiram dificuldades e tive que ser afastado do caminho, mas os Tongs consideravam-me demasiado valioso para ser morto. Fui então contrabandeado para os Estados Unidos, estabelecendo-me em Nova Iorque. Tinha uma carta de apresentação, em código, para um dos dois mais poderosos Tongs da América, os Hip Sings. Nunca soube o que dizia aquela carta, mas fui imediatamente empregado como um auxiliar confidencial. No momento oportuno, na idade de trinta anos, fui promovido a uma espécie de tesoureiro. O tesouro continha mais de um milhão de dólares e eu cobiçava aquele dinheiro. Foi quando começaram as grandes guerras dos Tongs, nos últimos anos da década de 1920/30. Os dois grandes Tongs de Nova Iorque, o meu próprio, isto é, o dos Hip Sings, e o nosso rival, os On Lee Ongs, chocaram-se em terríveis combates. Em semanas, centenas foram mortos de lado a lado, e as suas casas e propriedades queimadas. Foi um período de tortura, assassínio e incêndios, do qual participei com verdadeiro prazer. Por fim, vieram os destacamentos de choque, e quase toda a força policial de Nova Iorque foi mobilizada. Os dois exércitos clandestinos foram atacados isoladamente, os quartéis-generais dos dois Tongs sofreram incursões e os seus chefes foram enviados para a cadeia. Eu recebi um aviso relativamente à incursão que iria realizar-se contra o meu próprio Tong. Algumas horas antes que ela se efetuasse, fui ao cofre forte, apoderei-me de um milhão de dólares, em ouro, e desapareci em Harlem, procurando ocultar-me cuidadosamente. Não obstante, fui tolo, pois deveria ter deixado os Estados Unidos, atingindo o canto mais remoto da terra. Até mesmo de dentro de suas celas de condenados, em Sing-Sing, os chefes do meu Tong lograram alcançar-me, golpeando-me. Os assassinos vieram durante a noite. Recusei-me a dizer onde estava o ouro e eles me torturaram durante toda a noite. Por fim, quando viram que não podiam vencer a minha resistência cortaram-me as mãos, para mostrar que o cadáver era o de um ladrão. Depois dispararam contra o meu coração e fugiram. Desconheciam, entretanto, um detalhe a meu respeito. Sou um dos homens, em cada milhão, que tem o coração do lado direito do peito. Tal é a proporção: um contra um milhão. Graças a isso, escapei. Por pura força de vontade sobrevivi à operação e aos meses de tratamento no hospital. E durante todo aquele tempo planejei como fugir com o dinheiro, como guardá-lo e o que fazer dele.
O Dr. No fez uma pausa. Suas têmporas estavam ligeiramente coradas. Seu corpo remexia-se dentro do quimono. Suas recordações certamente o tinham excitado. Por um momento fechou os olhos, compondo-se. Bond pensou: Agora! Saltarei sobre ele, matando-o? Quebro o meu copo e faça-o com um caco?