Os olhos se abriram e perguntaram: — Não os estou incomodando? Com certeza? Por um momento acreditei que a atenção dos senhores se dispersava.
— Não. — A oportunidade já tinha passado. Chegariam outras? Bond mediu bem as polegadas do salto e observou que a veia jugular estava bem à mostra, sobre a gola do quimono.
Os finos lábios arroxeados tornaram a fender-se e a história continuou: — Era, senhor Bond, o momento para decisões firmes e claras. Quando eles me deixaram sair fui ter com Silberstein, o maior comerciante de selos em Nova Iorque. Comprei um envelope, apenas um envelope, cheio dos mais raros selos do mundo. Foram necessárias semanas para reuni-los todos. Mas eu não me importei com o que tive de pagar nas praças de Nova Iorque, Londres, Paris e Zurique. Queria que o meu ouro se tornasse extremamente móvel. Investi-o todo nesses selos. Já tinha previsto a Grande Guerra, e sabia que uma de suas conseqüências seria a inflação. Sabia que o melhor se valorizaria ou pelo menos conservaria o seu valor. Entrementes, procurava mudar a minha aparência. Fiz que todos os meus cabelos fossem arrancados pelas raízes, meu espesso nariz aflasse, minha boca tornada maior e meus lábios afinados. Não podia tornar-me mais baixo, de modo que me tornei mais alto. Passei a usar sapatos especiais. Modifiquei toda a minha aparência. Deixei de lado as minhas pinças mecânicas e passei a usar mãos de cera dentro de luvas. Mudei o meu nome para Julius No — o Julius, de meu pai, e o No como rejeição dele e de toda e qualquer autoridade. Joguei fora meus óculos e comecei a usar lentes de contato. — um dos primeiros pares que foram fabricados. Em seguida fui a Milwaukee, onde não se encontram chineses, e inscrevi-me na faculdade de medicina. Escondi-me assim no mundo acadêmico, no mundo das bibliotecas e dos laboratórios, das aulas e dos acampamentos estudantis. E ali, também, senhor Bond, perdi-me no estudo do corpo e da mente humana. Por que? Porque desejava saber do quanto é capaz este barro. Queria conhecer os meus instrumentos, antes de começar a empregá-los na consecução de meu próximo objetivo — segurança total contra a fraqueza física, contra os perigos materiais e contra os azares da vida. Então, sr. Bond, daquela base segura, couraçado até mesmo contra as setas fundas e ocasionais do mundo, eu me lançaria à conquista do poder — o poder, sr. Bond, de fazer aos outros o que me fora feito, o poder de vida e morte, o poder de julgar, de decidir, o poder da independência absoluta relativamente a qualquer autoridade. Porque isso, sr. Bond, queira o senhor apreciá-lo ou não, é a essência do poder temporal.
Bond esticou o braço e serviu-se de mais uma dose de bebida. Depois, olhou para Honeychile. Ela parecia senhora de si e indiferente — como se a sua mente estivesse ocupada com outras coisas. Ela riu para ele.
O Dr. No disse com benevolência: — Espero que o senhor não esteja com fome. Tenha um pouco mais de paciência. Serei breve. Então, se ainda se recorda, eu estava em Milwaukee. Com o correr do tempo, completei os meus estudos e deixei os Estados Unidos, deslocando-me, por etapas fáceis, ao redor de todo o mundo. Intitulei-me “médico”, porque os médicos recebem confidencias e podem fazer perguntas sem despertar suspeitas. Estava procurando um lugar apropriado para o meu quartel-general. Tinha que ser um lugar seguro com relação à guerra que se aproximava; devia ser uma ilha, e estritamente particular, além de capaz de desenvolvimento industrial. Por fim, comprei Crab Key e aqui estou há catorze anos. Estes têm sido anos seguros e frutíferos, sem nuvens no horizonte. Enamorei-me da idéia de transformar os excrementos de pássaros em ouro, e ataquei o problema com paixão. Esta parecia-me a indústria ideal, pois havia uma procura permanente pelo produto, e as aves não reclamam nenhum cuidado, a não ser que as deixem em paz. Cada uma delas representa uma fábrica transformadora de peixe em adubo. A extração do guano é apenas uma questão de não estragar o produto mediante uma extração indiscriminada. O único problema é, na verdade, o custo da mão-de-obra. Estávamos em 1942. O trabalhador braçal ganhava, em Jamaica e em Cuba, apenas dez xelins por semana, e eu tentei uma centena deles a vir para a ilha mediante pagamento de doze xelins por semana. Com o guano a cinqüenta dólares a tonelada, eu estava muito bem colocado, mas sob uma condição, isto é, que os preços permanecessem estáveis. Consegui isto isolando completamente a minha propriedade do mundo inflacionário. Métodos brutais tiveram que ser empregados, de vez em quando, mas o resultado foi que os meus trabalhadores estão satisfeitos com os meus salários, pois representam os salários mais elevados que jamais tiveram. Trouxe para cá uma dúzia de negros chineses, com suas famílias, para atuarem como capatazes. Recebem uma libra por semana. São rijos e merecedores de confiança. Por vezes tive que ser violento com eles, mas logo aprenderam. Automaticamente a minha população foi aumentando, e acrescentei-lhe alguns engenheiros e construtores. Começamos a trabalhar na montanha e contratei especialistas com elevados salários. Tais especialistas eram mantidos afastados dos outros trabalhadores. Viviam no interior da montanha, enquanto durasse o seu trabalho, depois deixavam a ilha por navio. Foram eles que fizeram a instalação elétrica, puseram a ventilação e instalaram o elevador. Construíram ainda esta sala. O acabamento, cortinas e o resto, veio de toda parte do mundo. Foram ainda esses técnicos que construíram essa fachada de sanatório que serve para ocultar as minhas operações, no caso de um dia haver um naufrágio ou de o governador de Jamaica resolver fazer-me uma visita. — E aqueles lábios brilharam com um sorriso: — O senhor deve concordar em que sou capaz, se quiser, de conferir a mais distinta recepção a qualquer visitante — uma sábia precaução para o futuro! E, gradualmente, metòdicamente, minha fortaleza foi sendo construída, enquanto as aves iam defecando em seu teto. Mas foi duro, sr. Bond. — Os seus olhos negros não procuravam simpatia ou louvor. — Contudo, no fim do ano passado, todos os trabalhos foram terminados. Uma base segura e bem camuflada tinha sido terminada. Estava pronto para dar o próximo passo — a extensão do meu poder para o mundo exterior.
O Dr. No fez uma pausa. Levantou os braços, uma polegada, e deixou-os cair novamente no colo. — Sr. Bond, eu disse que não houve uma só nuvem nos céus durante estes últimos catorze anos. Mas, na verdade, houve sempre uma nuvem, durante todo o tempo, abaixo do horizonte. E o senhor sabe que nuvem foi essa? Foi uma ave, um ridículo pássaro chamado espátula rosada! Não o fatigarei com detalhes, sr. Bond, uma vez que já está a par de algumas circunstâncias. Os dois guardas, a milhas de distância do lago, eram abastecidos de Cuba por meio de lanchas. Ocasionalmente, ornitologistas procedentes dos Estados Unidos chegavam também de lancha e passavam alguns dias no acampamento. Não me importei com isso, já que aquela área estava bastante distanciada dos meus homens, e eu não permitia que os guardas se aproximassem de minhas instalações. Não havia nenhum contato. Desde o princípio tornei claro à sociedade Audubon que não me avistaria com os seus representantes. E então o que aconteceu? Um belo dia, como um raio que caísse de um belo céu, recebo uma carta que me foi trazida pela lancha mensal. A espátula rosada tornara-se uma ave-maravilha para o mundo, e a Sociedade Audubon comunicava-me que pretendia construir um hotel na área que arrendara, nas proximidades do rio pelo qual o senhor subiu. Amantes de aves, procedentes de todo o mundo, viriam para observar os pássaros e seriam tirados filmes. Crab Key, diziam-me eles em sua carta persuasiva e lisonjeira, tornar-se-ia um lugar famoso.
— Senhor Bond — e os braços do Dr. No ergueram-se e baixaram para trás, enquanto uma expressão irônica aforava em seu sorriso — será crível isto? Este isolamento que eu tinha conseguido! Os planos que tinha para o futuro! Tudo aniquilado por causa de um grupo de mulheres velhas e suas aves! Examinei o contrato de arrendamento e escrevi à Sociedade, oferecendo-lhe uma grande soma para comprá-lo. Recusaram. Então passei a estudar essas aves e conhecer-lhes os hábitos. Subitamente descobri a solução. E era fácil. O homem sempre fora o maior agente predatório dessas aves. As espátulas são aves extremamente tímidas e se assustam facilmente. Mandei vir da Flórida um trator para pântanos — o veículo que é empregado na prospecção de petróleo e que é capaz de atravessar qualquer tipo de terreno. Adaptei-o para causar medo e queimar — não somente aves, mas também seres humanos. E, numa noite de dezembro, o meu veículo saiu, atravessou o lago, destruiu as instalações da Sociedade e ambos os guardas foram dados como mortos, embora mais tarde se tenha sabido que um conseguira escapar para morrer em Jamaica. Os ninhos das aves foram destruídos e o terror espalhado entre elas. Êxito total! Desenvolveu-se uma histeria nas espátulas e morriam aos milhares. Foi quando recebi um pedido para que um avião aterrasse em minha pista, pois pretendia-se levar a cabo uma investigação. Resolvi concordar com aquele pedido, pois esta atitude me parecera mais sábia. Mas arquitetei um acidente. Um caminhão fugiu ao controle e atravessou a pista no momento em que o aparelho estava aterrando. Todos os indícios do caminhão foram removidos e os cadáveres foram colocados reverentemente dentro de caixões, depois do que comuniquei a tragédia. Como esperava, houve mais investigações. Chegou um destróier e eu recebi o comandante com toda cortesia. Ele e seus oficiais foram trazidos pelo mar e depois por terra até aqui. Viram os destroços do acidente e os meus homens sugeriram que os guardas talvez tivessem enlouquecido em virtude da solidão, tendo lutado entre si. Possivelmente o sobrevivente teria deitado fogo às instalações e fugido em sua canoa de pesca. A pista de aterragem foi cuidadosamente examinada e os meus homens informaram que o avião aterrara com grande velocidade. Os pneumáticos talvez tivessem arrebentado no primeiro impacto. Por fim, veio a cerimônia da entrega dos corpos. Tudo muito triste, mas os oficiais se deram por satisfeitos. O destróier se fez ao largo e a paz voltou a reinar na ilha.