Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.
O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.
Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?
— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.
Bond apertou os dentes.
— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...
A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:
— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!
O Dr. No sorriu fracamente.
— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.
Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.
Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?
O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.
O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?
Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.