A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.
— Fale.
— Chegou 007.
— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.
M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.
James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.
— Bom dia, 007.
— Bom dia, senhor.
Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.
Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?
M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.
— Como se está sentindo? Contente por reassumir?
— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.
— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?
A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:
— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.
M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.
— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?
Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.
— Não, isso eu não quero.
— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?
Bond disse obstinadamente:
— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.
— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.
M inclinou-se para o telefone interno.
— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.
— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.
Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.
— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?
— É uma arma para moças.
M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.
— Deveras? E por que está dizendo isso?
— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.
— Como ficaria, com silenciador?
— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.
M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:
— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.
— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.
Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:
— Posso dar uma olhada na sua pistola?
A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:
— E o seu coldre?
Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.
Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.
— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.
Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.
— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?
O major Boothroyd empregou sua voz de perito:
— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.