Puxo um fio solto das minhas calças de ganga.
– Como se não soubesses.
– Não sei tudo, Millie. – Lança-me um olhar, o seu rosto par cialmente obscurecido pelas sombras. – Diz-me.
E é isso que faço.
32
Conto-lhe tudo. Até aos últimos pormenores dos abusos de Douglas e da fuga de Wendy.
Prometi à Wendy que não dizia a ninguém, mas o Enzo não é qualquer um. Ele percebe. Nós os dois trabalhámos lado a lado para ajudar mulheres como a Wendy. Se há em todo o mundo algum ser humano a quem possa confiar a história, é ele.
Levo quase o caminho todo até à minha porta da frente a chegar ao fim da história. O Enzo não disse grande coisa. É típico dele, porém. Nunca conheci ouvinte tão intenso. Muitas vezes aprecio a forma como presta atenção ao que eu digo. Mas, ao mesmo tempo, dá comigo em doida quando não consigo perceber o que está a pensar.
– E pronto – digo por fim, após descrever como deixei a Wendy no motel e o meu regresso à cidade. – Agora ela está a salvo.
O Enzo continua calado.
– Talvez – acaba por dizer.
– Nada de talvez. Está.
– Esse homem, Douglas Garrick – diz. – É poderoso e perigoso. Não creio que vá ser assim tão fácil.
– Só dizes isso porque o fiz sem ti. Não acreditas que possa fazer isto sozinha.
Ele vira para a rua em frente ao meu prédio. Está completamente escura e inerte, exceto por um homem solitário ao canto que fuma algo que provavelmente não é um cigarro. Olhando para esta rua, consigo perceber por que o Enzo se sentiu obrigado a proteger-me, embora continue a não acreditar que precisasse.
Vira-se para me olhar nos olhos.
– Acredito que podes fazer tudo – diz baixinho. – Mas, Millie, estou só a dizer... tem cuidado.
– A Wendy é muito cuidadosa.
– Não. – Os seus olhos negros trespassam-me. – Tem cuidado m. Ela foi-se embora, mas tu continuas aqui.
Compreendo o que está a dizer. Se Douglas tiver a menor suspeita de que eu estive envolvida no desaparecimento da mulher, pode tornar-me a vida muito difícil. Mas estou preparada. Já lidei com homens piores e saí por cima.
– Terei cuidado – digo-lhe. – Já não é responsabilidade tua preocupares-te comigo. Por isso não precisas de me proteger.
– Quem o fará, então? O Brócolo?
Sinto o rosto a arder.
– Na verdade, não preciso que nenhum dos dois me proteja. Quando aquele sacana me atacou no meu prédio, cuidei bastante bem de mim mesma. Por isso não te preocupes comigo. Se te vais preocupar com alguém, devias preocupar-te com a segurança do Douglas Garrick. De mim.
– Bem – diz –, isso também.
Por um momento, ficamos a olhar um para o outro. Quem me dera que o Enzo não me tivesse deixado e voltado para Itália. Se isso não tivesse acontecido, podia ter-me ajudado com a Wendy. Podia ter-me falado mais cedo sobre as suas reservas, de modo a podermos resolvê-las. Podia tê-la ajudado a obter uma nova identidade para que tivesse mais opções.
E eu iria para casa com ele esta noite, em vez de com o Brócolo. Quer dizer, com o Brock.
– É melhor ir – digo.
Lentamente, aquiesce.
– Está bem.
Desaperto o cinto de segurança, apesar de me sentir relutante em sair do carro.
– Tens de parar de me seguir.
– Está bem.
– Digo-o a sério. – Lanço-lhe um olhar fulminante. – Namoro com outra pessoa, agora. Andas a perseguir-me. É sinistro e desnecessário. Tens de parar. Caso contrário... terei de chamar a polícia ou assim.
– Já disse que sim. – Leva uma mão ao peito. Veste uma T-shirt sob o casaco leve e ainda consigo, infelizmente, distinguir todos os seus músculos por baixo. – Dou-te a minha palavra. Acabou-se a vigilância.
– Ótimo.
Deixarei de ter aquela sensação sinistra de que há alguém a observar-me. Resolvi oficialmente o mistério do Mazda preto com o farol rachado, e este carro nunca mais me voltará a incomodar. Devia sentir-me aliviada, mas não sinto. Quando muito, sinto-me ainda mais inquieta. Tinha um anjo da guarda e nem sabia.
– Enfim... – Abro a porta do lado do passageiro. – Suponho que isto é o adeus.
Começo a sair do carro, mas então a mão do Enzo fecha-se sobre o meu antebraço. Viro-me para o fitar e vejo-lhe as sobrancelhas escuras franzidas.
– Ainda tenho o mesmo número de telefone – diz-me. –Se precisares de mim, liga. Lá estarei.
Tento forçar um sorriso, mas não se materializa.
– Não vou precisar de ti. Devias... sei lá, arranjar outra namorada. A sério.
Solta-me o braço, mas os seus lábios continuam franzidos.
– Liga só. Eu espero.
É exasperante o quanto parece estar certo que eu lhe vou ligar. Se há algo que devia saber sobre mim, é que sei tomar conta de mim mesma. Às vezes, demasiado bem.
Mas, ao subir os degraus para o terceiro andar do meu prédio, um pressentimento terrível sobe-me à boca do estômago. E se o Enzo tiver razão? E se subestimei Douglas Garrick? Afinal, é um homem verdadeiramente terrível, a julgar por tudo o que vi. E, além disso, é incrivelmente rico.
Não pode ser assim tão fácil para a Wendy escapar-lhe, pois não? Quando o Enzo e eu costumávamos ajudar mulheres a fugir dos seus maridos abusivos, planeávamos tudo meticulosamente e, mesmo assim, às vezes éramos descobertos. Tenho a sensação de que Douglas é mais esperto do que muitos dos outros homens com quem lidámos. Embora saiba agora que não era ele no carro que me seguia, pode ter outras formas de controlar a mulher.
E se sabia exatamente o que planeávamos fazer esta noite?
O pensamento atinge-me como uma tonelada de tijolo ao chegar ao patamar do terceiro andar. Tal como a rua, o terceiro andar do meu prédio está totalmente silencioso. E mesmo que o Enzo ainda esteja lá fora – apesar de eu o ter feito prometer que não ficaria – não me pode ajudar aqui dentro.
Olho para a porta fechada do meu apartamento. Tem uma trava do lado de dentro, mas não a posso correr ao sair para o dia. A fechadura da porta é quase pateticamente fácil de arrombar. Até eu podia provavelmente fazê-lo. Mas nunca me preocupei com isso, pois não tenho nada que valha a pena roubar.
Se alguém quisesse entrar no meu apartamento, seria demasiado fácil.
Tenho as chaves da minha porta na mão direita, mas hesito antes de as introduzir na fechadura. E se Douglas estiver mesmo um passo à minha frente? Se estiver à espera no meu apartamento, pronto para me persuadir a denunciar a localização da Wendy por quaisquer meios necessários?
Onde quer que o Enzo esteja, não pode ter ido longe. Tenho o seu número gravado no meu telemóvel – nunca o apaguei. Podia ligar-lhe e pedir-lhe para entrar comigo no apartamento, só para garantir que é seguro.
Claro que, depois daquele discurso que eu fiz sobre como não preciso dele, isso implicaria engolir o meu orgulho. Mas já fiz muito disso na vida. O que é mais uma vez?
Aperto as chaves na mão. Tenho de tomar uma decisão.
Afasto as dúvidas enervantes e introduzo a chave na fechadura. Ao rodá-la, sinto o coração palpitar no peito, mas abro a porta.
Por um segundo, quase espero que algo me salte para cima. Amaldiçoo-me por não ter o meu gás-pimenta pronto. Mas, ao entrar, está tudo tranquilo. Não há ninguém à minha espera. Ninguém me salta para cima. Não está aqui ninguém.
– Olá? – chamo. Como se o intruso estivesse por aqui à espera de um cumprimento adequado.
Não obtenho resposta. Estou sozinha neste apartamento. Talvez Douglas venha a juntar todas as peças, mas tal ainda não aconteceu.
Portanto, fecho a porta do apartamento atrás de mim e corro o ferrolho.
33
Sabes – diz-me o Brock, enquanto enfia uma garfada de massa Pad Thai na boca –, abriu uma vaga para rececionista a tempo parcial na minha sociedade de advogados. Estás interessada?