Meu Deus, pode este elevador andar mais devagar? Finalmente, o elevador para com um rangido e as portas abrem-se. O sol desceu no céu e o apartamento está às escuras. Por que não acendeu ninguém as luzes? O que se passa aqui?
– Olá? – chamo.
Ocorre-me então um pensamento terrível.
E se Douglas está aqui? Se obrigou a Wendy a ligar-me e a pedir-me para vir, a fim de me poder castigar por a ter ajudado? Parece o tipo de coisa de que seria capaz.
Às cegas, vasculho a minha bolsa à procura do gás-pimenta. Encontro-o junto ao meu pó compacto e tiro-o, apertando-o na mão direita.
– Wendy? – grito.
Com a mão esquerda, vou ao bolso das minhas calças de ganga, onde enfiei o telemóvel. Não quero ligar à polícia, mas, ao mesmo tempo, tenho um pressentimento terrível sobre o que vou encontrar neste apartamento.
Entro na sala de estar, os meus passos no soalho altos como tiros neste silencioso e vazio apartamento. O meu coração para ao ver as manchas vermelhas no tapete. E, depois, o corpo estendido no sofá modular.
– Wendy! – exclamo.
É muito pior do que eu pensava. Douglas não anda à procura da mulher ou a tentar exercer vingança. Já a encontrou e, agora, jaz morta no sofá. Corro para ela, esperando ver um ferimento de faca ainda aberto no seu peito e uma mancha carmesim na frente do seu vestido azul-escuro. Mas não vejo nada disso.
E, então, abre os olhos.
– Wendy! – Sinto-me como se estivesse prestes a morrer de ataque cardíaco. Oxalá tivesse alguma da medicação do Brock disponível, pois o meu coração adotou um ritmo insano e irregular. – Oh, meu Deus! Pensei que estava...
– Morta? – Senta-se no sofá, e é então que percebo que o carmesim no chão é vinho tinto que se derramou de um copo tombado sobre a mesa de café. Douglas vai passar-se se eu não o limpar. Ela ri amargamente. – Oh, quem me dera.
Estava tão concentrada em perscrutar-lhe o corpo à procura de ferimentos ou sangue que não vi o novo hematoma a desabrochar no seu rosto, onde o último já quase se tinha desvanecido. Retraio-me ao vê-lo – posso apenas imaginar o que causou tal coisa.
– O seu rosto – murmuro.
– Não é o pior. – Soerguendo-se no sofá, a Wendy estremece e agarra-se à caixa torácica. – Partiu-me seguramente as costelas.
– Tem de ir ao hospital!
– Nem pensar. – Lança-me um olhar. – Mas um saco de gelo seria bem-vindo.
Corro para a cozinha e encontro um no congelador. Cubro-o com um pano da loiça e levo-lho. Ela aceita-o com gratidão, pondera por um momento onde o quer e acaba por o encostar ao peito.
– Estava à minha espera – começa, num tom pouco acima de um sussurro. – Quando chegámos à quinta da Fiona em Potsdam. Já lá estava. Ele sabia.
Abano a cabeça. Não compreendo como isto aconteceu. Contava que pudesse acabar por a encontrar, mas tão rápido?
– Não sei como me encontrou tão depressa. – Fecha os olhos, como que a tentar afastar uma dor de cabeça. –Pensava que havia a hipótese de acabar por me encontrar, mas não tão cedo. Pensei que tinha mais tempo...
– Eu sei...
– Millie – Muda de posição, o que faz o saco de gelo sair fugazmente do lugar –, disse a alguém onde fomos?
– De maneira alguma!
Bem, isso não é inteiramente verdade. Disse a uma pessoa. Disse ao Enzo.
Mas dizer ao Enzo é o mesmo que não dizer a ninguém. O Enzo jamais diria uma palavra sobre algo assim. Quando muito, tentaria protegê-la.
– Fui estúpida ao pensar que alguma vez poderia fugir dele. – Ajusta o saco de gelo. – É isto a minha vida. É mais fácil se simplesmente... aceitar.
– Não devia aceitar. – Agarro-lhe a mão e aperto-a. –Wendy, eu vou ajudá-la. Não tem de passar o resto da sua vida a suportá-lo.
– Sei que tem boas intenções...
– Não. – O meu maxilar contrai-se. – Oiça-me bem. Vou ajudá-la. Prometo.
A Wendy não diz nada. Já não acredita em mim. Mas vou resolver isto, de alguma forma.
Não deixarei Douglas Garrick sair impune depois de a magoar desta maneira.
35
Continuo a trabalhar para os Garrick.
Não disse ao Brock a verdadeira razão por que decidi ficar com eles e recusar a entrevista na sua firma, apenas que afinal precisavam de mim. Não me fez mais perguntas, mas sobretudo porque tenho andado a evitá-lo.
Da próxima vez que o vir, terei de lhe confessar a verdade sobre o meu passado. É altura. Mas isso não quer dizer que não esteja receosa, daí ter estado convenientemente «ocupada» nos últimos dias. Apesar de ter prometido explicar-lhe tudo «em breve», nunca há literalmente uma boa altura. Talvez nunca venha a haver.
Mas tenho de lhe dizer. Tem de saber a verdade antes de me apresentar aos pais, por amor de Deus.
Esta noite, estou a preparar o jantar para os Garrick. Tenho peitos de frango a assar no forno e batatas a cozer no fogão, que irei passar pelo processador de alimentos para fazer um puré de batata perfeitamente sedoso, exatamente como Douglas gosta. Sentir-me-ia tentada a cuspir-lhe, se não soubesse que a Wendy também o vai comer.
Enquanto estou a verificar o forno, a Wendy espreita para a cozinha. O seu rosto pisado parece muito melhor e já não estremece ao andar, pelo que presumo que esteja a sarar.
– O jantar está quase pronto – digo-lhe.
Ela deixa-se ficar à porta da cozinha por um momento.
– Preciso de falar consigo por um instante, Millie – diz por fim. – Pode vir à sala de estar?
Não deve haver problema em deixar a comida por alguns minutos, por isso sigo imediatamente a Wendy até à sua sala de estar e a uma secretária ao canto da divisão. Tem uma expressão estranha no rosto, e sinto um lampejo de preocupação. Há um par de dias, prometi-lhe que encontraria uma saída para a sua situação, mas ainda não cumpri essa promessa. Mas fá-lo-ei.
Estou só a tentar descobrir uma forma de o fazer sozinha.
– Descobri uma coisa no outro dia na estante do Douglas – diz-me. – Algo que gostaria que visse.
Com uma mistura de curiosidade e ansiedade, sigo-a enquanto coxeia escadas acima até uma estante no corredor. Puxa o que parece ser um dicionário e pousa-o numa prateleira vazia. Abre-o e é então que percebo que o dicionário foi completamente esvaziado.
E que tem no interior uma arma.
Tapo a boca com a mão.
– Oh, meu Deus! Isso é do Douglas?
Ela anui.
– Sabia que tinha uma arma algures em casa, mas nunca soube onde a guardava.
– Nem sequer a tranca?
– Suponho que queira ser capaz de lhe chegar rapidamente, se precisar – a Wendy ergue a arma do livro. Segura-a como alguém que nunca antes agarrou numa arma. – Isto é uma saída.
– Não. Não – reprimo a vaga de pânico no meu peito. –Acredite em mim, por mais desesperada que esteja, não quer fazer isso.
Não tenho muita experiência com armas, mas tenho muita experiência a realizar atos drásticos por desespero. E nunca, nunca mais volto a seguir por esse caminho. Como ela também não devia.
Mas a Wendy não está a ouvir. Segura a arma com as duas mãos e aponta-a ao outro lado da sala. Não tem o dedo no gatilho, mas a sua intenção é óbvia.
– Por favor, não faça isso – imploro-lhe.
– E está carregada – diz. – Pesquisei como verificar. Tem cinco balas dentro.
Não consigo parar de abanar a cabeça.
– Wendy, não quer fazer isto. Garanto-lhe.
Ela vira-se para me fitar, a maçã do rosto esquerda ainda púrpura do punho do marido, embora começando a esmorecer num tom amarelo.
– Que alternativa tenho?
– Quer passar o resto da sua vida na prisão?
– Já lá estou.
– Escute. – O mais suavemente possível, tiro-lhe a arma das mãos. Deposito-a de novo na secretária. – Não quer fazer isto. Há outra maneira.
-Já não acredito em si.
Imagino a Wendy a apontar a arma ao rosto de Douglas. Da forma como a segurava agora mesmo e o quanto tremia, provavelmente falharia mesmo de perto.