– Faz sequer alguma ideia de como disparar esta coisa?
Ela encolhe os ombros.
– Aponta-se a quem queremos matar e depois prime-se o gatilho. Não é nada de transcendente.
– É um pouco mais complicado do que isso.
Os seus olhos arregalam-se.
– Já alguma vez disparou uma arma, Millie?
Hesito por demasiado tempo. Sim, tenho alguma experiência a disparar uma arma. O Enzo estava convencido de que era uma boa competência a aprender, por isso fomos os dois algumas vezes ao campo de tiro. Fizemos um curso de segurança no manuseio de armas e obtivemos certificados. Mas nunca disparei nenhuma fora do campo de tiro. Não sou propriamente uma especialista.
– Mais ou menos.
Ela lança-me um olhar significativo.
– Millie...
– Não. – Agarro na arma e guardo-a de novo no falso dicionário. Fecho-o com um estalo. – Isso não vai acontecer.
– Mas...
O que quer que a Wendy estivesse prestes a dizer é interrompido pelo som do abrir das portas do elevador. Rapidamente, agarro no dicionário e enfio-o de novo na prateleira onde o encontrei enquanto a Wendy corre de volta para o quarto de hóspedes a uma velocidade surpreendente. Apresso-me a descer as escadas para que Douglas não perceba o que eu estava a fazer.
Douglas entra na sala de estar e parece ligeiramente surpreendido por me ver a descer as escadas. As suas densas sobrancelhas negras sobem-lhe pela testa.
– Julguei que estaria a preparar o jantar?
– E estou – garanto-lhe. – Está agora mesmo no forno.
– Compreendo... – Os seus olhos profundos estudam-me o rosto com minúcia suficiente para me fazer retorcer. –O que é o jantar, então?
– Peito de frango assado, puré de batata e cenouras glaceadas – respondo, apesar de a ementa de hoje ter sido cuidadosamente programada pelo próprio Douglas.
Douglas fica um momento a refletir.
– Não ponha batatas no prato da minha mulher. Fazem-lhe mal ao estômago.
– Está bem...
– E só meia dose de frango para ela – acrescenta. – Não tem estado bem e duvido que consiga comer muito.
Enquanto escorro as batatas que a Wendy não poderá partilhar, compreendo finalmente o porquê de ela ser tão dolorosamente magra. É o Douglas quem lhe leva a comida todas as noites. Controla cada porção que lhe entra na boca.
Além de tudo o resto, fá-la sistematicamente passar
fome. Ainda uma outra forma de a controlar, de a manter débil e de lhe matar o espírito.
A Wendy tem razão. Isto tem de acabar.
Pelo lado positivo, agora é seguro cuspir no puré de batata.
36
Quando vou para a cama, ainda estou a pensar naquela arma escondida dentro do dicionário.
A expressão nos olhos da Wendy ao mostrar-ma confundível. Está a falar a sério. Chegou a um ponto de desespero em que pensa para consigo: ou ele ou eu. E esse é um mau lugar para se estar. É então que se começam a cometer erros estúpidos.
Mais cedo do que tarde, terei de ligar ao Enzo. Ajudá-la-á melhor do que eu. Mas não posso ligar-lhe agora. É quase meia-noite e, se me vir a ligar-lhe a esta hora, pensará de certeza que é um convite sexual. Não quero que fique com a ideia errada.
Ainda que uma pequena parte de mim não tenha parado de pensar nele desde aquela noite em que fui a Albany.
Continuo zangada por ter desaparecido como desapareceu, mas não posso negar a pura alegria que senti quando saiu daquele carro. Ocorre-me agora que nunca me senti assim pelo Brock, e não estou certa de que alguma vez venha a sentir.
Mas isso não é justo para o Brock. O meu namorado tem tantas qualidades. Acima de tudo, é um homem confiável que jamais me abandonaria em tempos de necessidade. Disso tenho a certeza.
Por outro lado, não lhe pude contar nada do que se está a passar com a Wendy. A sua reação teria sido ligar imediatamente à polícia e não se envolver. O típico pensamento de advogado.
Como se lhe estivessem a arder as orelhas no bairro do lado, uma mensagem de texto do Brock aparece no meu telemóveclass="underline"
Amo-te.
Cerro os dentes. Oh, meu Deus, quantas vezes tem este homem de me dizer que me ama? Espera que o escreva de volta, mas simplesmente não me consigo obrigar a fazê-lo neste momento. Estes «amo-te» estão a manter-me refém. Assim, tiro antes uma selfie a fazer cara de beijo e envio-lha em resposta. É a modos que o mesmo que dizer amo-te, não é? Ele responde de imediato.
Estás gira. Oxalá estivesses aqui.
Oh, meu Deus, tem literalmente tudo o que me diz de ser uma espécie de jogo de culpa por não ter ido viver com ele?
Atiro o telemóvel para o lado, frustrada. Vou a levantar-me para ir escovar os dentes quando o aparelho começa a tocar. É provavelmente o Brock, tendo em conta que não respondi à sua mensagem. Vai provavelmente perguntar-me se pode vir cá. E eu terei de lhe responder que não com jeitinho.
Só que, ao olhar para o ecrã do meu telemóvel, vejo que não é o Brock. É o Douglas.
Por que está o Douglas a ligar-me à meia-noite?
Por um minuto, fico a olhar para o telemóvel, o meu coração a palpitar. Não há nenhuma boa razão para o meu patrão me estar a ligar à meia-noite. Sinto-me tentada a deixar ir para o correio de voz, mas, em vez disso, deslizo o dedo pelo ecrã para atender a chamada.
– Millie – A voz soa ligeiramente seca. –, acordei-a?
– Não...
– Ótimo – diz. – Peço desculpa por ligar tão tarde, mas achei que seria melhor dizer-lhe já. Depois desta semana, não iremos necessitar mais dos seus serviços.
– Está... está a despedir-me?
– Bem, não propriamente a despedi-la – responde. –Mais a dispensá-la. A Wendy parece estar a sentir-se melhor e gostaria de voltar a ter alguma privacidade na nossa própria casa.
– Oh...
– Não é que não tenha feito um trabalho adequado... –Caramba, obrigadinha. – É só que um casal precisa da sua privacidade. Compreende o que estou a dizer?
Percebo perfeitamente a mensagem. Não quer que eu fale com a Wendy ou que a tente ajudar.
– Compreende, não é verdade, Millie? – insiste.
– Claro – respondo, entre dentes cerrados. – É claro que sim.
– Ótimo. – O seu tom aligeira. – E, só para lhe agradecer por tudo o que fez por nós, gostaria de lhe oferecer um par de bilhetes para um jogo dos Mets. Gostaria disso, não gostaria?
– Sim – respondo lentamente. – Gosto dos Mets...
– Perfeito! Está tudo resolvido, então.
– Ahã.
– Boa noite, Millie. Durma bem.
Ao desligar a chamada, sinto ainda uma inquietação. Algo me estava a incomodar naquela conversa – algo que não consigo identificar ao certo. Deixo-me cair de novo na cama e é então que olho para a T-shirt demasiado grande que uso para dormir.
É uma T-shirt dos Mets.
Ergo o olhar para a janela à minha frente. As persianas estão fechadas, como sempre. Corro para a janela, enfio os dedos entre os estores e olho para a rua. Está completamente às escuras. Não vejo nenhum homem ominoso no exterior. Não está ninguém a olhar para a minha janela com uns binóculos.
Talvez tenha sido apenas uma coincidência. Quer dizer, sou de Nova Iorque. Quem não gosta dos Mets?
Mas não creio que fosse. Havia algo no seu tom quando falou em oferecer-me os bilhetes para os Mets. Gostaria de lhe oferecer um par de bilhetes para um jogo dos Mets. Gostaria disso, não gostaria?
Oh, meu Deus, e se me consegue ver aqui dentro?
Mas não é como se fosse um segredo enorme eu usar uma camisola dos Mets para dormir. Posso ter aberto a porta com ela vestida, a dada altura. E todos os namorados que tive sabem dela, ainda que essa lista só inclua o Brock e o Enzo.
Ainda assim – tenho mais algumas camisolas com que também durmo. Douglas sabia o que eu tinha vestido esta noite.