Não consegui dormir esta noite. Andei às voltas na cama e, sempre que começava a adormecer, via o cadáver de Douglas caído no chão do apartamento. Finalmente, dirigi-me tropegamente à casa de banho e tomei um dos comprimidos para dormir que lá tenho guardados. Mergulhei então num sono cheio de sonhos, assombrada pelos olhos mortos do meu antigo patrão a fitar-me.
Viro-me na cama, tocando no ninho de ratos que é o meu cabelo. O latejar na minha têmpora intensifica-se e demoro um momento a perceber que há também batidas a vir da porta da frente.
Está alguém à porta.
Consigo arrastar-me para fora da cama e embrulhar o corpo num roupão.
– Já vou! – crocito, esperando que as batidas possam parar. Mas quem quer que esteja à porta é persistente.
Espreito pelo óculo. Está lá um homem, com uma imaculada camisa branca e uma gravata preta sob uma gabardina.
– Quem é? – pergunto.
– Sou o detetive Ramirez, da Polícia de Nova Iorque –responde a voz abafada do homem.
Oh, não!
Mas, bem, não há razões para entrar em pânico. O meu patrão está morto, por isso é óbvio que quererão fazer– me algumas perguntas. Não há motivos para preocupação.
Destranco a porta e entreabro-a. Não pode entrar aqui sem a minha explícita autorização e não tenho a menor intenção de lha dar. Não que tenha algo a esconder, mas nunca se sabe.
– Menina Calloway? – pergunta, numa voz surpreendentemente profunda. Baseando-me nos papos sob os seus olhos e na proporção de grisalho para preto no seu cabelo curto, situá-lo-ia nos cinquenta e poucos anos.
– Olá – respondo, hesitante.
– Perguntava-me se lhe podia fazer algumas perguntas – diz.
Esforço-me ao máximo por manter o meu rosto inexpressivo.
– Sobre o quê?
Hesita, perscrutando-me o rosto.
– Conhece um homem chamado Douglas Garrick?
– Sim... – Não há nenhum mal em admitir isso. Seria relativamente fácil provar que eu trabalhei para os Garrick.
– Foi assassinado ontem à noite.
– Oh! – Tapo a boca com a mão, tentando parecer surpreendida. – Isso é horrível.
– Esperava que pudesse ir à esquadra e responder a algumas perguntas.
O rosto do detetive Ramirez é uma máscara. Os seus lábios são uma linha reta, nada revelando. Mas ir à esquadra? Isso parece sério. Por outro lado, não está a puxar de um par de algemas e a ler-me os direitos. De certeza que estão só a encarar o caso de forma extra séria por o Douglas ser tão rico e importante.
– Quando quer que vá?
– Agora – responde sem hesitar. – Posso dar-lhe boleia.
– Tenho... tenho de ir?
Não tenho obrigação de ir se não estiver detida – conheço demasiado bem os meus direitos. Mas gostaria de ouvir o que tem a dizer.
– Não tem – acaba o detetive por responder. – Mas eu recomendá-lo-ia vivamente. De uma forma ou de outra, vamos ter de conversar.
Sinto um mal-estar no estômago. Isto parece ser algo mais do que apenas algumas perguntas casuais sobre o meu empregador.
– Gostaria de ligar ao meu advogado – digo.
Ramirez mantém os olhos nos meus.
– Não creio que seja necessário, mas está no seu direito.
Não sei que tipo de perguntas me vão fazer, mas não me agrada a ideia de estar na esquadra sem um advogado presente, diga o que disser. Infelizmente, há apenas um advogado que conheço suficientemente bem para lhe poder ligar neste momento. E esta vai ser uma conversa difícil.
Ramirez espera enquanto eu vou buscar o meu telemóvel e seleciono o número do Brock. Já deve estar no trabalho, por esta altura, mas atende ao fim de poucos toques. Passa a maior parte do dia à sua secretária e raras vezes vai a tribunal.
– Olá, Millie – diz. – Estás bem?
– Hã – respondo eu. – Não propriamente...
– O vírus estomacal piorou?
– O quê?
Por um momento, o Brock fica em silêncio.
– Disseste-me ontem à noite que tinhas um vírus estomacal.
Oh, certo. Quase me esquecia da mentira que lhe contei para não ir ao seu apartamento.
– Sim, isso melhorou, mas preciso da tua ajuda com outra coisa. Algo importante.
– Claro. Do que precisas?
– Então, hã... – baixo a voz para que Ramirez não me consiga ouvir. – Sabes o meu antigo patrão, Douglas Garrick? Na verdade, foi... foi assassinado ontem à noite.
-Jesus – arqueja o Brock. – Isso é horrível, Millie. Sabem quem foi?
– Não, mas... – lanço um olhar a Ramirez, que me observa. – Querem interrogar-me na esquadra.
– Oh, uau. Acham que sabes algo importante?
– Suponho. Ainda que não saiba, na verdade. Mas, enfim... sentir-me-ia melhor se tivesse um advogado presente comigo – pigarreio. – Ou seja, tu.
– Sim, claro. – Quero estender os braços pelo telefone e dar-lhe um abraço. – Posso encontrar-me lá contigo assim que terminar umas coisas. De certeza que vai correr tudo bem, mas de bom grado estarei lá para ti.
Enquanto anoto a morada da esquadra onde o detetive Ramirez me irá interrogar, não posso deixar de pensar para comigo que o Brock e eu não tardaremos a ter a Conversa que tencionávamos começar ontem à noite, afinal.
42
Quando chego à esquadra da polícia em Manhattan, estou verdadeiramente apavorada. O detetive Ramirez tentou fazer conversa durante a via-; carro, mas eu respondi-lhe sobretudo em monossílabos e grunhidos. Mesmo enquanto falava sobre o tempo, deu-me a sensação de que andava à caça de informação e não quis dar-lhe nada.
Mas, ao chegarmos à esquadra, o Brock está à minha espera. Veste o seu fato cinzento e aquela gravata azul que faz os seus olhos parecerem ainda mais azuis. Sorri ao ver-me entrar com o detetive, não aparentando estar minimamente preocupado. Isso provavelmente irá mudar muito em breve.
– Aquele ali é o meu advogado – digo a Ramirez. – Gostaria de falar com ele em privado antes de ser interrogada.
Ramirez anui secamente.
– Vamos encaminhá-los para uma sala para conversarem e, quando estiver pronta, gostaria de lhe fazer umas perguntas.
Conduz-me a uma pequena sala quadrada com uma mesa de plástico e algumas cadeiras também de plástico a rodeá-la. Não entrava numa sala de interrogatório há anos, e a visão causa-me um aperto no peito. Sobretudo quando o detetive me senta numa das cadeiras e me deixa ali sozinha com a porta fechada. Pensava que o Brock ia entrar comigo, mas parece estar ocupado no exterior. Pergunto-me o que lhe estarão a dizer.
Passo quase outros quarenta minutos sozinha na sala, num pânico crescente. Quando o rosto familiar do Brock surge à porta, quase desato a chorar.
– Por que demoraste tanto? – exclamo.
O Brock tem uma expressão conturbada no rosto. Parece um pouco rígido ao instalar-se na cadeira diante de mim. Há uma cratera entre as suas sobrancelhas.
– Millie – diz. – Estive a falar com o detetive lá fora. Estão relutantes em dizer-me grande coisa, mas isto não é um interrogatório de rotina. És a principal suspeita.
Fico a olhar para ele. Como pode ser? A Wendy disse à polícia que foi ela que alvejou o Douglas. Estão a duvidar da sua história? Devia ser um caso simples.
A não ser que...
– Têm um mandado de busca para o teu apartamento –diz-me. Um mandado? – Têm lá uma equipa agora mesmo.
Estão a fazer buscas no meu apartamento? Não posso imaginar o que
procuram. Não tenho lá nada que seja minimamente suspeito. Felizmente, não sujei de sangue as minhas roupas ontem à noite. Verifiquei.
– Por que haveriam de pensar que o mataste? – O Brock abana a cabeça. – Não faz sentido.
É agora. Tenho de lhe falar do meu passado. Se vai agir como meu advogado, precisa de saber. Caso contrário, passará por idiota.
– Escuta – digo-lhe. – Há algo que precisas de saber sobre mim.