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Quase tudo aquilo de que o detetive Ramirez me acusou era falso. Mas uma coisa era absolutamente verdadeira. Alvejei o Douglas Garrick. Matei-o. E, embora negue tudo o resto, esse facto permanece.

– Oh, Cristo – murmura o Brock. – Millie, não posso crer que foste capaz de...

– Mas não é o que pensas – digo.

A cadeira de plástico do Brock raspa contra o chão duro da sala de interrogatório quando se levanta.

– Não posso representar-te, Millie. Não é apropriado e... simplesmente não.

Apesar da inutilidade do meu namorado durante o interrogatório, a ideia de me abandonar assusta-me ainda mais.

– Sabes que não tenho dinheiro para um advogado...

– Então podes usar o defensor público – diz. – Ou pedir um empréstimo, ou... não sei. Mas não posso ser eu. Lamento.

– É assim, então. – O meu queixo treme ao erguer o olhar. – Estás a acabar comigo.

– Suponho que sim. – Abana a cabeça. – Sinceramente, nem sei quem és. – Passa a mão pelo cabelo, puxando obsessivamente as madeixas. – Não posso crer que isto está a acontecer. Não posso mesmo. Queria que conhecesses os meus pais. Pensava realmente que tu e eu...

Não precisa de completar o pensamento. Imaginava um futuro em que casaríamos. Teríamos filhos juntos. Envelheceríamos juntos. Não imaginava que fosse acabar numa esquadra, comigo a ser interrogada por homicídio.

Assim, não o posso realmente culpar por partir. Mas não deixo de irromper em lágrimas mal a porta se fecha nas suas costas.

45

O verdadeiro milagre é que, depois de tudo isto, o detetive Ramirez não me prende. Quando me dá a notícia de que posso partir, chego mesmo a perguntar-lhe:

– Tem a certeza?

Estava certa de que me iam levar sob custódia, mas deixa-me sair com um aviso para não deixar a cidade. Dado que não tenho dinheiro nem carro, não vou a lado nenhum nos próximos tempos.

Depois de sair da esquadra, agarro instintivamente no telemóvel. É quando percebo que não tenho ninguém a quem ligar. Normalmente, teria ligado ao Brock para o informar de que fui libertada, mas tenho a sensação de que não quer saber.

Claro que há uma pessoa que quereria saber.

O Enzo.

O Enzo ajudar-me-ia. Se lhe ligasse, acreditaria sem questionar cada palavra que eu dissesse. Mas não sei se quero seguir outra vez por esse caminho. E fiz todo aquele discurso sobre não precisar da sua ajuda, pelo que não estou prestes a voltar para ele a rastejar uma semana depois, implorando que me salve.

Posso salvar-me a mim mesma. Nem sequer estou detida. Talvez toda esta situação se resolva.

Após ponderar as minhas opções por um instante, seleciono o número da Wendy da minha lista de contactos. Não sei se é apropriado ligar-lhe neste momento, mas preciso de respostas. Tínhamos um acordo ontem e o que o detetive alega vai totalmente contra o que decidimos. Por outro lado, talvez estivesse apenas a inventar coisas para me assustar e levar a confessar ou a implicar a Wendy. Não excluiria nada em relação àquele detetive.

Naturalmente, vai logo para o correio de voz.

Mais vale ir para casa. Afinal, amanhã podem prender-me e nunca mais lá poderei voltar. Não é como se pudesse pagar uma fiança.

Apanho o comboio de regresso ao meu apartamento no Bronx. Depois de tudo o que aconteceu hoje, mal consigo pôr um pé à frente do outro. Tenho de passar uns bons cinco minutos a vasculhar a minha bolsa à procura das chaves, até ter a certeza de que as perdi. Quando estou prestes a desistir, encontro-as enfiadas no fundo da bolsa.

– Millie!

Mal entro no edifício, a minha senhoria, a Sra. Randall, sai apressadamente do seu apartamento no primeiro andar, envergando um dos seus vestidos demasiado grandes que não lhe apertam a cintura. Traz o rosto enrugado todo franzido e projeta o lábio inferior.

– A polícia esteve aqui! – exclama. – Obrigaram-me a abrir o teu apartamento e fizeram buscas! Tinham um papel a dizer que eu tinha de os deixar entrar!

– Eu sei – gemo. – Peço desculpa por isso.

A Sra. Randall semicerra os olhos para me fitar.

– Andas a esconder droga lá em cima?

– Não! De todo! – Só assassinei alguém, mais nada. Caramba.

– Não quero mais sarilhos no meu prédio – diz. – E tu só trazes sarilhos. Duas vezes que a polícia veio cá por tua causa! Quero-te fora. Tens uma semana.

– Uma semana! – exclamo. – Mas, senhora Randall...

– Uma semana e mudo as fechaduras – silva. – Não te quero por perto, seja o que for que fazes naquele teu apartamento.

Sinto um aperto no coração. Como raios vou eu encontrar outro apartamento com tudo o que me está a acontecer? Talvez seja melhor se for presa. Ao menos então terei um sítio onde ficar. E comida gratuita.

Subo as escadas até ao meu apartamento. Espero encontrá-lo esquadrinhado e não fico desiludida. Os agentes que revistaram o local não fizeram qualquer esforço em voltar a pôr tudo nos seus devidos lugares. Levarei o resto da noite a arrumar tudo.

Deixo-me cair no sofá, exausta. Não posso lidar com esta confusão esta noite. Talvez amanhã. Talvez nunca. De que adianta, se vou para a prisão, seja como for?

Ao invés, agarro no controlo remoto e ligo a minha televisão manhosa. Suponho que é isto que vou fazer na minha última noite de liberdade.

Infelizmente, a televisão está sintonizada num canal noticioso. A história do homicídio de Douglas Garrick está em todas as notícias neste momento. A apresentadora no ecrã, com o seu brilhante cabelo louro, informa que a polícia está a falar com uma «pessoa de interesse».

Ei, apareci nas notícias. Sou uma «pessoa de interesse».

O programa passa então para um vídeo da Wendy. Está a falar com um jornalista e tem os olhos raiados de sangue e inchados.

Os hematomas no seu rosto parecem ter desaparecido por completo, o que presumo se deva à maquilhagem. Vira-se para se dirigir à câmara.

– O meu marido Douglas era um homem incrível – afirma, numa voz surpreendentemente forte que não parece de todo ela. – Era generoso, brilhante e planeávamos constituir família em breve. Não merecia ter a sua vida interrompida desta forma. Não é justo que... – Para de falar, embargada pela emoção. – Eu... peço desculpa...

O que foi aquilo?

Como pode a Wendy falar assim de Douglas depois do que lhe fez? Entendo não querer falar mal dos mortos, mas está a dar a ideia de que era um santo. O homem estava a segundos de a estrangular até à morte quando eu lhe acabei com a vida. Por que não diz ela isso ao jornalista?

O vídeo passa para a apresentadora loura. Os seus límpidos olhos azuis fixam-se no ecrã.

– Se só agora se juntou a nós, a nossa principal notícia é o brutal homicídio de Douglas Garrick, o multimilionário diretor– –executivo da Coinstock. Foi encontrado morto ontem à noite no seu apartamento no Upper West Side, com um tiro fatal no peito.

O ecrã passa para uma fotografia de um homem na casa dos quarenta, com a legenda «Douglas Garrick, diretor-executivo da Coinstock». Fico a olhar fixamente para lá, para o cabelo escuro do homem e os seus suaves olhos castanhos, o duplo queixo e as rugas em torno dos seus olhos ao sorrir para a câmara. Enquanto olho para a foto de Douglas Garrick, percebo uma coisa.

Nunca vi este homem na vida.

O homem cuja fotografia aparece no ecrã é-me completamente desconhecido. Parece-se um pouco com o homem com quem interagi no apartamento e, ao longe, poderia não se notar a diferença. Mas não é ele. Não é decididamente ele. Este homem é alguém completamente diferente.

Portanto, se o homem no ecrã é o Douglas Garrick...

Quem diabo matei ontem à noite?

SEGUNDA PARTE

46

WENDY

Devem achar que sou uma pessoa horrível.

Ajudaria se dissesse que, apesar de nunca me ter agredido, o Douglas era um péssimo marido? Humilhou-me e fez-me a vida miserável. E eu ter-me-ia contentado com o divórcio.