– Esperar que o Douglas tenha um ataque cardíaco não é um plano sólido para o futuro.
O Russell não parece gostar de fantasiar com a morte do Douglas da mesma forma que eu. Mas isso é só porque não o conhece como eu.
– Tem de haver uma saída para esta situação do acordo pré-nupcial – comento. – O Douglas está a ser um sacana sádico e tem de pagar pela maneira como me tem vindo a tratar. Devia haver algum modo de castigar os maridos que tratam as mulheres desta forma. Cortar-me o dinheiro e ameaçar tirar-me a minha casa... Isso é basicamente, tipo, abuso.
Ao dizer as palavras, algo aflora ao fundo do meu pensamento. Uma história que a minha amiga Audrey me contou há séculos. Sobre uma empregada doméstica que defende as mulheres que são maltratadas pelos maridos.
E dura, acredita... Se achar que um tipo anda a fazer mal a uma mulher, fará basicamente tudo para o parar.
Fecho os olhos, tentando lembrar-me do nome da mulher. E então ocorre-me:
Millie.
O Douglas não é terrível da mesma forma que o marido da Ginger era – não é fisicamente abusivo. Mas não deixa de ser maléfico e manipulador. O abuso não é necessariamente apenas físico – não será ter o meu marido a expulsar-me da minha própria casa e a deixar-me na miséria tão abusivo como partir-me um osso?
Concordaria essa mulher das limpezas com isto? Não sei. Talvez precisasse de um pouco de persuasão.
Mas... e se visse um homem tratar-me terrivelmente e acreditasse ser o meu marido? Claro que não poderia ser realmente o Douglas, pois anda ativamente a evitar-me. E jamais me poria fisicamente as mãos em cima, ainda que eu o provocasse. Mas essa tal Millie não sabe quem é o meu marido. O Douglas limpou meticulosamente a Internet de fotografias suas. Se a Millie visse um homem a bater-me, sentir-se-ia impelida a ajudar-me. Se o que ele fizer for suficientemente mau, nem serei capaz de a impedir.
Lentamente, começa a formar-se um plano na minha cabeça.
57
Algumas semanas antes
Ao ver-me ao espelho, quase grito.
O meu rosto parece um pesadelo de florescentes hematomas púrpura, misturados com outros a esmorecer em amarelo. É doloroso de contemplar. O Russell vê-me dar os últimos retoques na maçã do rosto e parece impressionado.
– És uma mágica, Wendy – diz-me. – Parece real.
Passei horas a praticar. Vi vários vídeos no YouTube, e sou agora uma especialista mundial em criar hematomas de aspeto realista. Parece realmente que alguém me deu uma tareia substancial.
Espero que a Millie aprecie o trabalho despendido nesta obra-prima.
De modo geral, a Millie parece estar a acreditar verdadeiramente na nossa pequena encenação. E, além disso, é uma excelente cozinheira e empregada doméstica. Até me conseguiu arranjar alguns cucamelões – os meus preferidos. É uma pena o que lhe vai acontecer.
Mas não há outra maneira.
– Está quase perfeito – digo, guardando a minha paleta de maquilhagem. – Só falta uma coisa.
O Russell arqueia uma sobrancelha. Tem vindo a representar na perfeição o papel de Douglas desde que a Millie chegou. É incrível – quando se combinam a aparência e a personalidade do Russell com a riqueza e o poder do Douglas, obtém-se verdadeiramente o homem ideal.
– A sério? A mim parece perfeito.
Inspeciono o meu rosto ao espelho uma vez mais. Perfeito não chega. Tem de ser melhor do que perfeito. Se a Millie suspeitar por um segundo que isto é maquilhagem, acaba-se o jogo. Tem de ser impecável.
– Tens de me dar um murro – anuncio.
O Russell atira a cabeça para trás e solta uma risada.
– Certo. Parece-me bem.
– Falo a sério. Preciso que me abras o lábio. Tem de parecer real.
O sorriso apaga-se do rosto do Russell ao perceber que o digo cem por cento a sério.
– O quê?
– Ela não pode desconfiar que isto é maquilhagem – explico-lhe. – E não posso simular um lábio fendido com o material que tenho. Tens de me esmurrar.
O Russell lança-me um olhar horrorizado ao mesmo tempo que se afasta de mim.
– Não te vou dar um murro na cara.
– Não tens de te sentir mal. Estou a dizer-te para o fazeres.
– Nunca bati numa mulher na minha vida – parece ligeiramente indisposto. O que me leva a questionar se terá a fibra necessária para ir avante com este plano. Terá de fazer bem pior do que dar-me um murro no rosto antes de isto terminar. – Não te vou bater, Wendy.
– Tens de o fazer.
– Não farei. Não posso.
Estou tão frustrada que me apetece gritar. Pensará que isto é uma piada? Tenho umas pequenas poupanças na minha conta pessoal, que guardei para dias difíceis, além de algum dinheiro que fiz a vender joias e roupa. Mas tenho estado a usá-las para viver e para pagar o salário –extremamente generoso, devo acrescentar – da Millie. Gastei já também uma parte a comprar um vestido que a polícia acabará por suspeitar que o Douglas deu à Millie, bem como uma cara pulseira gravada. E, claro, enchi o armário de produtos de limpeza que adquiri a pretexto de ter alergias terríveis, mas que realmente comprei para que o porteiro não apanhasse a Millie a carregar frascos de detergente para o chão e cera para móveis.
Seja como for, o dinheiro não vai durar muito mais tempo. Tenho de acabar com isto – em breve.
Preciso que me esmurre.
– És patético – cuspo-lhe. – Não posso crer que te recusas a fazer esta coisinha por mim. Temos uma hipótese de deitar a mão à sorte grande, e aqui estás tu, a dar cabo de tudo.
– Wendy...
Lanço-lhe um sorriso escarninho.
– Não admira que, na casa dos quarenta, não passes de um vendedor de mobília. Patético.
– Basta, Wendy – diz o Russell, entredentes.
A sua mão direita cerra-se num punho. É sensível em relação à sua carreira. Sei que sim. Sempre sonhou ser um empresário de sucesso, e gerir uma pouco próspera loja de móveis antigos está bem longe desse sonho. Podia ajudá-lo a fazer muito mais – podia transformá-lo no homem que quer ser. No homem que merece ser.
Só precisa de me bater.
– És cá um falhado – prossigo. – O que vais fazer quando a loja falir? Arranjar um emprego no McDonald’s, a salgar batatas fritas?
– Chega! Para!
– Queres que pare? Então bate-me!
Antes que eu sequer perceba o que está a acontecer, uma explosão de dor eclode do lado esquerdo do meu rosto. Arquejo e cambaleio para trás, agarrando-me ao toalheiro. Por um segundo, vejo estrelas.
– Wendy! – O grito angustiado do Russell arranca-me ao meu torpor. – Jesus Cristo, peço imensa desculpa!
Parece estar à beira das lágrimas, mas não se sente tão mal como o meu rosto. Céus, acertou-me mesmo com força. Não tinha a certeza de que fosse capaz. Toco no rosto e percebo que há sangue a jorrar do meu nariz.
– Estás a sangrar – arqueja.
Foi à procura de alguns toalhetes de papel, e faço os possíveis por estancar o fluxo de sangue do meu nariz. Ao fim de alguns minutos, parece parar. Bem, maioritariamente.
Quando olho para o Russell, as suas poderosas sobrancelhas estão franzidas.
– Estás bem? Peço imensa desculpa.
A casa de banho está um desastre. O meu sangue gotejou pelo chão todo. E há uma marca ensanguentada de uma mão na beira do lavatório, onde me agarrei enquanto tentava desesperadamente fazer com que o meu nariz parasse de sangrar.
Oh, meu Deus, é perfeito.
58
Passo 7: Matar o Sacana
Na noite em que Douglas foi assassinado
As engrenagens rangem dolorosamente no elevador. Chegou.
É este o momento. Foi para isto que passámos os últimos meses a trabalhar. A Millie saiu do apartamento há uma hora, trémula e convencida de que tinha acabado de assassinar o meu marido. A polícia interrogá-la-á. Ela quebrará e confessará o que fez. E eu terei plantado cuidadosamente provas para os convencer que o fez porque andava a ter um caso com o Douglas. Não me posso dar ao luxo de ser envolvida.