– Obrigada por fazeres isto – digo-lhe, pelo que parece ser a centésima vez, enquanto guardamos as roupas da minha cómoda que agora parecem estar espalhadas por todo o quarto.
– Não é incómodo algum – responde.
Ao largar uma camisola no cesto da roupa suja, noto que não está tão cheio como parecia ontem. Vasculho as roupas – falta qualquer coisa.
Levaram a roupa que eu trazia ontem à noite.
Roo a unha do polegar, tentando lembrar-me da camisola e das calças de ganga que despi ontem à noite antes de cair na cama. Não tinham sangue – tenho a certeza disso.
Quase a certeza, pelo menos. Mas e se havia pequenas partículas microscópicas que serão descobertas ao testar? Parece possível. Ainda que, a estar certa a teoria do Enzo, nunca tenha havido nenhum sangue enquanto eu estava naquele apartamento. Mas não tenho a certeza absoluta.
O Enzo está ocupado a enfiar roupas numa gaveta. Estou grata por estar aqui, mas parte de mim quer que parta para eu poder entrar em pânico plenamente.
Pigarreio.
– Se tiveres de ir, não faz mal – digo-lhe.
– Não, isto é divertido. – Ergue umas cuecas cor-de-rosa rendadas que estão no chão. – Isto é bonito. São novas?
Aproximo-me e arranco-as das suas mãos. É uma boa distração, ao menos.
– Não me lembro.
– Consigo perceber por que gostava o Brócolo tanto de ti, com cuecas tão bonitas.
Lanço-lhe um olhar.
– Enzo...
– Desculpa. – Vejo-o baixar a cabeça. – Eu só... não o percebo.
Há mais de uma hora que estávamos a limpar sem discutir o Brock. Suponho que não devia ficar surpreendida por o referir.
– O que há para perceber?
– Não parece ser alguém de quem gostarias.
– Sim, bem... – Deixo-me cair na minha cama, com uma camisola amarrotada no colo. – É um bom tipo. Quer dizer, era simpático. Era um advogado de sucesso. Não há nada de que não gostar.
O Enzo acomoda-se ao meu lado na cama.
– Se é um bom tipo, onde está agora?
Não é uma questão injusta, mas não conhece a situação toda.
– Escondi-lhe algumas coisas sobre o meu passado. Ficou magoado. Disse que sentia que não sabia quem eu sou. É compreensível que se sentisse assim.
– Quem tu és não é algo que fizeste em adolescente –os seus olhos negros fitam intensamente os meus. – É óbvio quem tu és. Se não conseguiu perceber isso ao passar tempo contigo, então tem razão. Não merece estar contigo.
Não era como se o Enzo e eu tivéssemos a relação perfeita, mas nunca duvidei que me compreendia. Às vezes, parecia compreender-me melhor do que eu mesma. E eu sabia que, se alguma vez estivesse em apuros, faria tudo para me ajudar.
– Às vezes, penso... – Mordo o lábio inferior. – Que nunca nos ligámos por inteiro. E provavelmente a culpa é minha, por lhe ter escondido coisas. Seja como for, acabou.
– Tens a certeza?
Lembro-me do olhar que o Brock me lançou ao sair daquela sala de interrogatório.
– Sim. Tenho a certeza.
– Então – diz o Enzo –, se eu te beijasse, não me daria um murro no nariz?
– Não, mas talvez eu desse.
Um sorriso torce-lhe os lábios.
– Vou correr o risco.
Inclina-se para me beijar, e eu sinto-me como se tivesse estado à espera disto durante quase dois anos. Compreendo finalmente porque estava hesitante em ir viver com o Brock e contar-lhe os meus segredos. Porque nunca senti isto por ele. Nem perto.
E o Enzo tem razão. Não lhe dou um murro no nariz.
62
Estamos em frente ao prédio de arenito castanho desde as seis da manhã.
Foi difícil arrastar-me para fora da cama tão cedo, sobretudo porque o Enzo e eu fizemos uma noitada juntos, se é que me entendem. E na noite anterior o meu sono não foi propriamente excecional. Mas o Enzo insistiu terminantemente que devíamos estar aqui logo de manhã, para garantir que não nos escapa ninguém a entrar ou a sair.
Estamos, como o Enzo lhe chama, «disfarçados». Quando o disse, imaginei grandes óculos pretos com bigodes falsos, mas na realidade não vai além de um par de bonés de beisebol e óculos de sol. O Enzo usa um boné dos Yankees e deu-me um que diz I love New York. Só que, em vez da palavra love, tem um grande coração vermelho. Pareço uma maldita turista. É humilhante para alguém nascido e criado em Brooklyn.
– Turista é o melhor disfarce – diz-me o Enzo.
Talvez tenha razão, mas odeio-o. Ainda assim, estou disposta a fazer tudo para chegar ao cerne de seja o que for que se está a passar. Antes que acabe de novo na prisão.
Não podemos ficar a manhã toda no mesmo sítio, por isso circulamos, mantendo sempre os olhos fixos na entrada do edifício. Se houver uma entrada das traseiras como na penthouse dos Garrick, estamos lixados. Mas há muitos residentes a entrar e a sair, pelo que tenho esperança de que esta seja a única porta.
Neste momento, são oito da manhã. Há duas horas que
estamos aqui e não houve qualquer sinal do homem mistério – se é que realmente não o assassinei, como o Enzo pensa – ou da mulher loura. Há cerca de dez minutos, o Enzo anunciou que tinha fome, por isso foi ao Dunkirí Donuts do outro lado da rua. Sai com dois copos de café e um saco de papel pardo.
– Agarra – diz-me.
Recebo o café com gratidão.
– O que tens no saco?
– São bagels.
– Ui! – O meu estômago revolve-se ante a ideia de comer seja o que for. Nem sei por que perguntei. – Passo.
– Terás de comer, a certo ponto.
– Não agora. – Espreito pelos meus óculos de sol para o prédio de arenito castanho. – Não até o encontrarmos.
Tenho medo de desviar os olhos do edifício. Posso perdê-los, e então nunca encontrarei o homem mistério. Tenho medo de ser presa hoje e, ainda que o Enzo continue a tentar ajudar-me, não sabe como é esse homem. A única pessoa que o pode encontrar sou eu.
– Então – diz o Enzo. – Ontem à noite... foi bom, certo?
Bebo um longo gole do meu café.
– Não me consigo concentrar em nada neste momento, Enzo.
– Oh! – Olha para o seu próprio recipiente cheio de café. – Sim. Eu sei.
– Mas sim,/w bom.
Um dos cantos dos seus lábios arrebita-se.
– Tive tantas saudades tuas enquanto estive fora, Millie. Lamento tanto por isso. Não me arrependo de ter voltado para Itália pela minha mãe, mas não queria ter de escolher entre as duas pessoas mais importantes da minha vida. Queria que esperasses, mas não te podia pedir isso.
Baixo a cabeça.
– Devia ter esperado.
O Enzo abre a boca para dizer mais alguma coisa, mas, antes que consiga proferir qualquer palavra, eu agarro-lhe no braço.
– É ela! É aquela a mulher!
Através dos seus óculos de sol, o Enzo olha para o outro lado da rua, para a mulher de cabelo louro que vem a sair do prédio de arenito castanho, vestida com uma saia pelo joelho e um blazer.
– Tens a certeza?
– Bastante. – Reconheço-lhe o rosto e a cor do cabelo, apesar de estar arranjado de forma diferente. É possível que não seja ela. Mas não vi mais ninguém que chegasse sequer perto. – E agora?
A mulher ajeita a alça da sua bolsa e atravessa a rua. Preparo-me para começar a segui-la, mas então ela entra no Dunkin’ Donuts de onde o Enzo ainda agora saiu. A julgar pela fila, ficará lá pelo menos dez minutos.
O Enzo faz estalar os nós dos dedos.
– Vou falar com ela.
– Tu? O que lhe vais dizer?
– Pensarei em alguma coisa.
– Achas então que a vais abordar no Dunkirí Donuts e ela vai simplesmente contar-te tudo?
Ele leva uma mão ao peito.
– Sim! Sou muito encantador!
Reviro os olhos.