– Não propriamente... – Por um momento, o Joe fica em silêncio. – Wendy, está ciente que o Doug mudou o seu testamento no mês passado?
0 que?
– Não. Está a falar de quê?
– Mudou o testamento. Deixou tudo à caridade.
Invade-me uma vaga de tonturas. Poucos meses após o nosso casamento, o Douglas mandou redigir um testamento em que me deixava tudo. Fui com ele ao advogado para me assegurar de que o fazia, sobretudo porque o Douglas era um mestre da procrastinação. Nem me passou pela cabeça que pudesse ter mudado o testamento no curto período desde que nos separámos. Não teria feito isso.
A menos que...
– Está a mentir – cuspo para o telefone. – Está a inventar isto só para me impedir de receber qualquer parte do seu dinheiro.
– Seria tentador. Mas não, não estou a inventar. Tenho uma cópia autenticada do testamento mesmo à minha frente.
– Mas... – gaguejo. – Mas como pôde fazer isso?
– Bem, quando o Doug me explicou, referiu qualquer coisa sobre a Wendy ser uma cabra mentirosa e manipuladora, e que não queria que ficasse com dinheiro algum.
O meu coração parece saltar-me no peito e, por um momento, a minha visão fica turva. Como pode isto estar a acontecer? O Douglas falou em dar todo o seu dinheiro à caridade, mas nunca imaginei que já tivesse iniciado o processo.
– Isto é um ultraje – vocifero. – Não pode cortar-me do testamento! Sou a mulher dele, por amor de Deus! Vou contestar isto e, acredite, vou vencer.
– Tudo bem. Como queira, Wendy. Mas, entretanto, vou precisar que desocupe tanto a penthome como a casa na ilha, pois vamos vendê-los.
– Vá para o Inferno – silvo para o telefone.
Carrego no botão vermelho do meu telemóvel para desligar a chamada, mas tenho as mãos a tremer. Tenho de acreditar que o Douglas não pôde simplesmente assinar um papel a dizer que me vai deixar sem nada e já está. Posso combater isto. E, com o Douglas morto, não pode ripostar. De uma maneira ou de outra, vou receber a minha parte.
Ainda que não vá ter propriamente o património que imaginava. Mas não faz mal.
Enquanto olho fixamente para o meu telemóvel, tentando decidir o meu próximo passo, o aparelho começa de novo a tocar na minha mão. Inspiro fundo ao ver a identidade de quem me liga:
A Polícia de Nova Iorque.
69
Deve ser o detetive Ramirez. Ligou-me há horas, quando ainda estava na cidade, para me informar que iam prender a Millie. Espero que este seja um telefonema de seguimento para me comunicar que ela está devidamente atrás das grades. Com sorte, esta chamada não será tão perturbadora como a anterior.
– Estou? – digo para o telefone, tentando soar como uma viúva devastada. Aquelas aulas de representação que tive na universidade estão a compensar. Mereço um prémio da Academia pela minha atuação diante da Millie.
– Senhora Garrick? – É a voz de Ramirez. – Daqui fala o detetive Ramirez.
– Olá, detetive. Espero que tenha aquela mulher que matou o meu marido segura atrás das grades!
– Na verdade... – Oh, Senhor, o que foi agora? – Não conseguimos localizar a Wilhelmina Calloway. Fomos ao seu apartamento com um mandado de detenção e ela não estava lá.
– Bem, onde está ela?
– Se soubéssemos, tê-la-íamos detido, não é?
Mais uma vez, sinto aquele aperto no peito.
– O que estão a fazer para encontrar essa mulher? É muito perigosa, sabe?
– Não se preocupe. Acabaremos por a localizar. Prometo.
– Ótimo. Ainda bem que tem tudo sob controlo.
– Mas há uma outra coisa de que preciso falar consigo, senhora Garrick.
O que foi agora? Olho na direção da casa de banho. Não sei por que está o Russell ainda lá dentro quando sabe que eu saí. Vai ficar todo engelhado.
– Com certeza, detetive.
– Eis o que se passa, então – diz Ramirez, pigarreando. –O administrador de condomínio do apartamento esteve ausente da cidade nos últimos dois dias. Estava na Europa e não conseguimos contactá-lo. Em todo o caso, falei finalmente com ele esta tarde e disse-me algo realmente interessante.
– Oh?
– Disse que há uma câmara de segurança na entrada das traseiras do edifício.
Acho que o meu coração para por uns bons cinco segundos.
– Desculpe?
– De alguma forma, escapou-nos – diz. – Diz que a põe longe da vista porque os residentes não gostam de sentir que estão a ser espiados. E eis a parte engraçada: foi o seu marido quem, há cerca de um ano, forneceu o equipamento de segurança através da sua empresa, pois estava preocupado com aquela entrada das traseiras.
– Ah... ah, foi? – pergunto, embargada. Oiço um estrondo que parece vir da casa de banho, seguido de um chape de água, mas ignoro-o. Se o Russell tentou sair da casa de banho e caiu, terá simplesmente de se levantar sozinho.
– Sim, e acabámos agora mesmo de analisar todas as gravações. E nem quero acreditar. Segundo essas gravações, o seu marido não ia àquele apartamento há meses. Do género, durante todo o tempo em que a menina Calloway lá trabalhou. Portanto, não sei como andavam a ter um caso no apartamento, se nunca lá esteve sequer. A senhora sabe?
A minha boca parece quase demasiado seca para deixar sair quaisquer palavras, mas consigo responder:
– Talvez se encontrassem noutro sítio?
– Talvez. Só que não vejo quaisquer cobranças nos cartões de crédito por quartos de hotel ou algo parecido.
– É claro que não ia pagar com o cartão de crédito. Então eu veria. Provavelmente pagou em dinheiro.
– Talvez tenha razão – reconhece Ramirez. – Mas eis a parte realmente interessante. Na noite em que o seu marido foi assassinado, só apareceu à entrada das traseiras depois da hora a que o porteiro viu a Millie sair do edifício.
– Isso... isso é estranho...
Se viu essas gravações, também deve saber que eu estava no edifício à hora a que o Douglas foi assassinado. E, se sabe isso, estou em grandes sarilhos.
– Escute – diz. – Perguntava-me se podia vir à esquadra para esclarecer alguma confusão da nossa parte. Vamos enviar um carro-patrulha a sua casa.
– Eu... não estou em minha casa neste momento...
– Ah, não? Onde está, então?
Afasto o telemóvel do ouvido. A voz do detetive Ramirez soa subitamente distante:
– Estou? Senhora Garrick?
Carrego no botão vermelho para desligar a chamada e largo o telemóvel em cima da bancada, como se me pudesse queimar. Debruço-me sobre o lava-loiça da cozinha, combatendo uma vaga de náuseas e de tonturas.
Não posso acreditar que havia uma câmara na entrada das traseiras. Perguntei espaticamente por isso e disseram-me que não havia nenhuma. Mas isso era antes de o Douglas tão generosamente ter fornecido uma, porque é claro que faria algo assim – era esse o tipo de cromo preocupado, generoso e apaixonado por tecnologia que o meu marido era. Ou talvez tenha sido ainda outra tentativa de documentar o que eu andava a fazer nas suas costas.
Se havia uma câmara, isso bastará para ilibar a Millie. E cravar um prego bem grande no meu caixão.
Esfrego as têmporas, que começaram a latejar. Tenho de descobrir uma maneira de dar a volta a isto, porque não vou passar o resto da minha vida na prisão. Mas tenho algumas ideias. Já representei tão bem o papel de esposa maltratada para a Millie. Terei apenas de contar a história do meu terrível marido abusivo. Talvez, nessa noite fatídica, viesse a investir para mim, pronto a espancar-me até à inconsciência, pelo que eu fiz o que tinha de fazer. A legítima defesa é legal – era ele ou eu.
Isto poderia resultar.
– Russell! – chamo. – Precisamos de falar.
O Russell é uma enorme complicação. Se a polícia analisou as transmissões de vídeo da entrada das traseiras, tê-lo-á visto entrar também nessa noite. Mas talvez não haja nada a ligá-lo diretamente a mim. Ele e eu temos de combinar as nossas histórias. Espero que não aja como um bebé em relação a tudo isto. Consigo imaginá-lo a quebrar e a contar toda a história sórdida à polícia.