Corro para a casa de banho. O Russell não vai ficar satisfeito ao ouvir isto – era esperar demasiado que tudo fluísse sem entraves. Mas, de uma forma ou de outra, superá-lo-emos. Já antes me vi em más situações e saí delas.
– Russell – volto a dizer. – O que...
Ao chegar à porta da casa de banho, a primeira coisa que vejo é todo o vermelho. Tanto vermelho, a nadar diante dos meus olhos. A água na banheira, que costumava ser transparente, a roçar o enevoado, está agora de um profundo carmesim. Ergo o olhar e localizo a fonte do sangue, vindo de uma ferida hiante na garganta do Russell.
E, então, olho para o seu rosto. Para o queixo caído. Para os olhos que fitam fixamente em frente, sem pestanejar.
70
O Russell está morto.
Assassinado.
E aconteceu entre o momento em que saí da casa de banho e agora.
Lembro-me da janela aberta que avistei anteriormente ao sair para ir buscar o vinho. Alguém entrou nesta cabana. Alguém veio a esta cabana e fez isto ao Russell.
Temo saber quem é esse alguém. Neste momento, há uma pessoa que está numa vendetta contra mim, bem como um historial de comportamento violento. E a polícia foi incapaz de a encontrar.
– Millie? – chamo.
Não obtenho resposta.
E, então, as luzes apagam-se.
Gostaria de dizer que foi a tempestade, mas não me parece que o vento esteja suficientemente forte para mandar a luz abaixo. Alguém cortou a eletricidade.
Aperto os braços sobre o peito enquanto um calafrio me atravessa. A cabana ficou negra como breu agora que a energia se foi. Tenho o meu telemóvel, e tinha alguma rede, mas deixei-o na cozinha. Se for esperta, é provável que já o tenha agarrado por esta altura. O que significa que não tenho forma de pedir ajuda.
– Millie? – chamo novamente.
Não obtenho resposta. Está a brincar comigo – deve odiar-me, neste momento. E tem todo o direito a odiar-me. Estava a tentar ajudar-me e eu atirei-lhe com as culpas de tudo para cima. Foi demasiado fácil.
E, agora, as palavras da minha amiga Audrey ressoam na minha cabeça: É dura, acredita. É perigosa.
A Millie é extremamente perigosa. Isso é evidente.
E eu fiz dela uma inimiga.
– Millie – repito, num guincho. – Por favor, oiça-me. Eu... peço desculpa. Não devia ter feito o que fiz. Mas tem de saber que o Douglas era abusivo. Estava a dizer-lhe a verdade.
Partem-se vidros algures do outro lado da sala. Viro a cabeça na direção do som. A não ser que a Millie tenha óculos de visão noturna, deve estar tão cega como eu na escuridão. Talvez haja alguma forma de eu poder usar isso em meu favor.
– O Douglas fez-me imensas coisas terríveis. Era horrível como marido. Precisava de sair daquele casamento. Tem de compreender...
A Millie continua a não responder. Mas posso sentir a sua raiva fervente. Meti-me com a mulher errada.
– Millie – prossigo. – Tem de saber que eu não estava a fingir. E a sua bondade para comigo... Significou tudo. Tive de fazer o que fiz.
Surge um relâmpago, e é suficientemente brilhante para me mostrar que tenho o caminho livre até à cozinha, que está cheia de facas e de outras coisas que teoricamente posso usar como arma, mesmo que ela tenha ficado com o meu telemóvel.
Que se lixe o argumentar com aquela psicopata. Se é luta que quer, vai tê-la.
Corro na direção da cozinha. Os passos da Millie seguem-me, mas não paro. Mantenho os braços estendidos diante de mim, esperando não colidir de frente com uma parede. Pela graça de Deus, consigo chegar à cozinha. Passo pela pequena mesa, tentando não tropeçar nela. Consigo ultrapassar esse obstáculo, mas então os meus pés escorregam debaixo de mim.
O chão está coberto de sangue.
Deve ser sangue do Russell, trazido para aqui pelas solas dos sapatos dela. Quando fecho os olhos, ainda o consigo ver estendido na casa de banho, a garganta cortada, os olhos fixos no nada. Foi a Millie quem lhe fez isso, a quem nem verdadeiramente odeia. Não posso sequer imaginar o que me terá reservado.
Não lhe darei oportunidade de o fazer. Hei de dar luta até ao fim. Ela pode ser dura, mas eu também sou.
Ponho-me de pé, apesar de sentir a anca direita a latejar devido à queda. Apalpo caminho até à bancada da cozinha e tateio às cegas em busca do bloco de facas. Tenho a certeza de que vi um na bancada. Não é imaginação minha.
Por favor, aparece. Por favor.
Mas as minhas mãos saem vazias. Não consigo sentir nada que se assemelhe a uma arma na bancada da cozinha. Naturalmente, a Millie é demasiado esperta para isso. Só a consegui enganar antes porque confiava em mim, mas, agora que conhece o meu jogo, previu todos os meus passos. Já assassinou uma pessoa esta noite e tem toda a intenção de fazer de mim a sua próxima vítima.
Tateio em busca do fogão. Estou certa de que vi uma frigideira. Se conseguir agarrá-la e, de alguma forma, acertar-lhe com força suficiente, talvez consiga derrubá-la. É a minha única hipótese.
Mas, então, oiço os passos atrás de mim, cada vez mais perto. Demasiado.
Oh, meu Deus. Ela está comigo na cozinha.
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Tateio às cegas. A Millie está mesmo atrás de mim. Provavelmente a menos de dois metros. Se ao menos surgisse outro relâmpago. Então, talvez conseguisse encontrar algo que pudesse usar contra ela. Mas está demasiado escuro. Não consigo ver o que está mesmo à minha frente.
– Wendy – diz ela.
Viro-me, recuando contra o fogão. O meu coração parece querer-me explodir do peito e, por um momento, a divisão começa a girar. Respiro fundo, tentando acalmar-me. Não me fará bem algum se desmaiar. Provavelmente, acordaria de mãos e pés atados.
Os meus olhos conseguiram ajustar-se à escuridão. Consigo distinguir claramente a silhueta da Millie do outro lado da divisão. E, então, algo reluz na sua mão direita.
É uma faca. Deve ser a mesma que utilizou para matar o Russell, provavelmente ainda encharcada no seu sangue.
Oh, meu Deus.
– Por favor – imploro-lhe. – Posso dar-lhe o que quiser. Vou ser podre de rica.
A Millie dá um passo em frente.
– Sei que tem dificuldades financeiras – continuo a balbuciar. – Posso pagar toda a sua educação. A sua renda. E mais um bónus por cima. Nunca mais terá de se preocupar com o dinheiro.
Mal a consigo ver na cozinha escura, mas a silhueta da Millie abana a cabeça.
– Direi à polícia que estava errada. – A minha voz adquiriu um timbre histérico. – Dir-lhes-ei que não estava lá de todo. Que me enganei acerca de tudo.
Bem posso prometer-lhe isso, tendo em conta que a polícia tem as gravações que mostram que a Millie nunca esteve no apartamento ao mesmo tempo que o verdadeiro Douglas. Mas a Millie não sabe disso. Quando sair daqui, há fortes probabilidades que a polícia me leve sob custódia, mas aceito isso. Irei para a prisão, se for preciso, mas não quero morrer.
A Millie não parece sensibilizada pela minha oferta. Dá outro passo em frente enquanto eu tento recuar, mas não tenho nenhum sítio para onde ir.
– Por favor – imploro-lhe. – Por favor, não faça isto.
Nesse momento, um relâmpago ilumina a divisão – demasiado tarde para me ajudar a procurar uma arma na bancada. Os meus olhos esforçam-se por assimilar a pequena centelha de luz e, por um instante, consigo ver claramente o rosto da mulher que avança para mim com uma faca na mão direita.
Oh, Jesus Cristo.
Não é a Millie.
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Marybeth? – sussurro.
A secretária do meu marido – que acontece ser também a mulher do Russell – está agora a poucos passos de mim, trespassando-me com o seu olhar. Nunca antes tive medo da Marybeth. Mesmo quando andava a dormir com o seu marido, nunca lhe dediquei um segundo pensamento. Parecia razoavelmente simpática, e o Russell nunca me disse o contrário.
Subestimei-a. A garganta cortada do Russell é prova disso.