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Sou – objetivamente – mais atraente do que a Marybeth. Tem mais uns dez anos do que eu e nota-se. O seu cabelo louro é fibroso, tem finas rugas em torno dos olhos e à volta da boca, e a pele sob o seu queixo pende demasiado frouxa. Mas então a cozinha mergulha de novo nas trevas e ela torna-se outra vez uma silhueta.

– Sente-se – ordena a Marybeth.

– Eu... não consigo ver nada – gaguejo.

Por um segundo, sou ofuscada por outro clarão de luz –ela ligou a lanterna do seu telemóvel. Aponta-a na direção da mesa da cozinha: um pequeno quadrado de madeira com duas cadeiras dobráveis, uma de cada lado. Cambaleio em direção à mesa e deixo-me cair num dos dois lugares, segundos antes de as minhas pernas cederem.

A Marybeth senta-se na outra cadeira. Agora que temos a luz do telemóvel, posso distinguir de novo os traços do seu rosto. Os seus lábios formam uma linha reta e os seus geralmente brandos olhos azuis são como punhais. Veste uma gabardina manchada com o sangue do Russell. Parece absolutamente aterradora.

Mas tiro algum conforto de ainda não me ter matado. Por alguma razão, quer-me viva, o que me dá algum tempo para descobrir como sair daqui.

– O que quer? – pergunto-lhe.

Ela pestaneja. O branco dos seus olhos reluz, engastado numas órbitas escuras e encovadas.

– Há quanto tempo andava a dormir com o meu marido?

Abro a boca, ponderando se devia mentir. Mas, então, olho-a nos olhos e entendo que é melhor não brincar com esta mulher.

– Dez meses.

– Dez meses – repete, cuspindo as palavras. – Mesmo debaixo do meu nariz. Éramos felizes até ter aparecido, sabe? Fomo-lo durante vinte anos. Ele não era perfeito, mas amava-me. – A voz falha-lhe. – Mas, assim que a conheceu...

– Peço imensa desculpa. Não é como se o tivéssemos planeado.

– Mas tinham planos. Grandes planos. Ele planeava deixar-me por si...

Não o diz como uma pergunta, por isso mantenho a boca fechada. O Russell dizia que planeava deixar a Marybeth por mim, mas, mesmo no fim, já não estava assim tão certa. Acabou por não ser o homem que eu julgava que era.

– Ele amava-a muito – acabo por dizer, esperando aplacá-la.

– Então por que andava a dormir consigo? – explode.

– Olhe – digo, tentando manter a calma, apesar de o meu coração continuar acelerado. – Ele queria voltar para si. Estava com dúvidas. Se não o tivesse...

Ela olha-me fixamente. Não me posso esquecer que esta mulher acaba de assassinar o marido. Não está à procura de voltar a juntar-se com ele. A única coisa no seu pensamento é a vingança.

– E o Doug... – Os seus olhos são como gelo ao fitarem os meus. – Matou-o, não foi? Juntamente com o Russell.

Abro a boca, pronta a negar. Mas, então, vejo a expressão nos seus olhos e percebo que não era uma pergunta.

– Sim, matei.

Por uma fração de segundo, os seus olhos suavizam-se ao encherem-se de lágrimas.

– O Doug Garrick era um homem realmente bom. O melhor. Era como um irmão para mim.

– Eu sei. E... lamento.

– Lamenta! – explode. – Não lhe passou à frente na fila do cinema. Assassinou-o! Está morto por sua causa!

Cerro os lábios, temendo dizer mais uma palavra, pois nada que eu diga irá corrigir a situação. A Marybeth está furiosa comigo – dormi com o seu marido e matei o seu amado chefe. Mas isso não quer dizer que mereça morrer aqui, às suas mãos.

Tenho de encontrar uma saída.

Os meus olhos pousam na faca segura na sua mão direita. Tem-na no colo e ainda está ensopada com o sangue do Russell – o seu sangue está absolutamente em todo o lado. Haverá alguma hipótese de lhe poder tirar a faca? A Marybeth não está propriamente no auge da forma física.

– O que quer de mim? – pergunto-lhe.

Ela leva a mão ao bolso da sua gabardina e tira uma folha em branco. Em seguida, continua a vasculhar até encontrar uma caneta. Faz deslizar ambos os objetos sobre a mesa da cozinha na minha direção.

– Quero que escreva uma confissão – anuncia.

A bílis sobe-me à garganta e tenho de a empurrar de novo para baixo.

– O quê?

– Ouviu o que eu disse. – Os seus olhos refulgem. – Quero que escreva tudo o que fez. Como seduziu o Russell. Como os dois conspiraram para matar o seu marido. Quero uma confissão completa.

– Está bem... – Não quero fazer isto, mas vi o que fez ao Russell. A ideia de me cortar a garganta como fez a ele...

– Faça-o!

As minhas mãos não param de tremer enquanto escrevo a minha confissão na folha em branco, agora manchada por impressões digitais carmesim. Não sei ao certo o que quer que eu diga, por isso tento manter as coisas simples. Não estou demasiado preocupada, pois nada que eu escreva sob a ameaça de uma faca será válido em tribunal.

A quem possa interessar,

Ao longo dos últimos dez meses, mantive um caso amoroso com Russell Simonds. Juntos, matámos o meu marido, Douglas Garrick.

Estudo-lhe os traços faciais. O seu rosto nada revela.

– É isto que quer? – pergunto.

– Sim, mas ainda não terminou.

– O que mais quer que eu diga?

– Eis o que tem de escrever. – Com a sua longa unha, bate no papel. – Já não consigo viver com a culpa.

Rabisco a frase, que sai quase ilegível, tal é o tremor nas minhas mãos. Por um segundo, a página fica desfocada e nem sequer consigo continuar a escrever, mas depois recupera a nitidez.

Ror isso, esta noite – Continua –, decidi pôr termo às vidas de ambos.

Paro de escrever, deixando cair a caneta dos meus dedos dormentes.

– Marybeth...

– Escreva!

Ergue a faca, aproximando-a do meu rosto. Por um segundo, fecho os olhos, recordando a ferida aberta na garganta do Russell. Oh, meu Deus. Esta mulher está a falar a sério. Escrevo a última frase da minha confissão.

– Agora assine – ordena a Marybeth.

Assim faço. Não estou em posição de recusar.

Agarra na minha confissão assinada e lê-a, embora continuando a manter-me debaixo de olho.

– Ótimo – decreta.

Compreendo o que se deve seguir. A confissão termina comigo a dizer que vou pôr termo à minha própria vida. O que significa que, até ao fim da noite, ela vai matar-me. O pensamento causa-me violentas tonturas e, apesar de esta mulher me estar a ameaçar com uma faca, corro para o lava-loiça da cozinha para vomitar. Ela deixa-me ir.

Debruço-me sobre o lava-loiça, vomitando em seco mesmo após ter esvaziado o estômago. Manchei a bancada de vermelho com o meu vómito, devido ao pinot noir. A cadeira da cozinha range atrás de mim e, passado um segundo, a Marybeth está ao meu lado junto ao lava-loiça.

– Por favor, não faça isto – imploro-lhe.

Ela inclina a cabeça.

– Não foi o que fez ao Doug? Não acha que merece?

Foi diferente com o Douglas. Tratava-me tão horrivelmente que não tive opção. E, mesmo na morte, continua a atormentar-me com o seu testamento. Céus, como vou eu contestar aquele estúpido testamento? Mas preocupar-me-ei com isso quando sair daqui. Primeiro, tenho de afastar esta mulher do precipício.

– Toda a gente comete erros – digo. – Sinto-me terrivelmente com as coisas que fiz. E agora tenho de viver com elas.

– Isso não chega – responde-me.

Sinto um sufoco no peito, como se tivesse um espartilho a apertar-me.

– Não chega mandar-me para a prisão para o resto da vida?

– Não. Merece pior. É uma pessoa verdadeiramente desprezível. E merece morrer de forma dolorosa e horrível.

O espartilho aperta-se ainda mais.

– O que acha que vai acontecer, então? Acha que a polícia vai acreditar que eu me esfaqueei até à morte? As pessoas não fazem realmente isso. Saberão que foi alguém a fazer-mo.

Por um momento, a Marybeth fica em silêncio.

– Tem razão – admite, pensativa. – Se fosse esfaqueada, perceberiam que não foi um suicídio.