Oh, graças a Deus. Consegui finalmente que esta mulher ouvisse a razão.
– Exato.
– Por isso é que não é dessa forma que vai morrer.
Sinto outra vaga de tonturas que quase me faz cair por terra.
– O quê? Do que está a falar?
Terá outra arma aqui dentro? Uma pistola? Umas matracas? O que vai esta mulher fazer-me?
– Alguma vez ouviu falar num medicamento chamado digoxina? – pergunta.
Digoxina? Por que me é familiar?
E então lembro-me. O Douglas costumava tomar esse medicamento. Para o seu coração. E a Marybeth tem uma cópia das chaves da casa em Long Island onde ele guardava a sua medicação.
– A intoxicação por digoxina é extremamente grave – prossegue. – Primeiro, sentem-se náuseas, tonturas, cãibras abdominais terríveis e a visão desfocada. É excruciante. Mas a forma como mata é fazendo o coração entrar numa arritmia mortal.
– Então – digo lentamente –, está à espera que eu engula um monte de digoxina?
Se me pedir para engolir comprimidos, terei de arranjar uma escapatória. Posso pô-los debaixo da língua e cuspi-los quando tiver oportunidade. Não me pode obrigar.
Mas, então, os seus lábios curvam-se num sorriso.
– Já o fez, Wendy.
Oh, meu Deus, o vinho.
Debruço-me de novo para o lava-loiça, mas nada sai. Ao mesmo tempo, o meu estômago é dominado por uma cãibra que me faz subir as lágrimas aos olhos. Apesar das tonturas crescentes, consegui aguentar-me de pé, mas agora deixo-me cair no chão, agarrada ao estômago.
A Marybeth agacha-se ao meu lado.
– Não sei bem quanto tempo isto irá demorar. Mais uma hora? Duas? Não há pressa. Não anda ninguém à nossa procura por aqui.
Ergo o olhar e encaro-a. O seu rosto alterna entre focado e desfocado.
– Por favor, leve-me ao hospital.
– Não me parece.
– Por favor – arquejo. – Tenha piedade...
– Como a Wendy teve piedade do Doug?
Estendo o braço, os meus dedos mal roçando a perna das suas calças de ganga. Tento agarrar-me a ela, mas é como se a minha mão já não obedecesse às minhas ordens.
– Faço tudo o que quiser. Dou-lhe tudo o que quiser. Prometo.
– E eu prometo – responde a Marybeth – que a sua morte será lenta e dolorosa. E, ao contrário de si, eu nunca quebro as minhas promessas.
73
MILLIE
É tempo de enfrentar a situação.
Dormi no carro do Enzo ontem à noite. Sabia que a polícia tinha um mandado para a minha detenção, e simplesmente não estava preparada para ser outra vez encarcerada. Por isso escondi-me, estacionada num beco escuro, e dormi no banco de trás. Houve um tempo em que costumava viver no meu carro, por isso dormir assim deu-me uma séria sensação de déjà vu.
Fez-me também perceber que não posso dormir no banco de trás do carro do Enzo para sempre. Tenho de me entregar e esperar que a verdade venha ao de cima.
Ao estacionar em frente ao meu prédio de apartamentos, espero ver lá metade da polícia, acampada e à minha espera. Ao invés, porém, só lá está um carro-patrulha. Ainda assim, sei que está ali por mim.
Com efeito, mal saio do Mazda do Enzo, um jovem agente salta do carro-patrulha.
– Wilhelmina Calloway? – pergunta.
– Sim – confirmo.
Wilhelmina Calloway, está detida. Preparo-me para o ouvir dizer, mas não o faz.
– Poderia fazer o favor de me acompanhar à esquadra?
– Estou detida?
Abana a cabeça.
– Que eu saiba, não. O detetive Ramirez gostaria muito de conversar consigo, mas não é obrigada a ir.
Muito bem, então. É um bom começo.
Subo para o banco de trás do carro-patrulha. Tive o meu telemóvel desligado a noite inteira, e ligo-o agora. Tenho algumas chamadas perdidas da Polícia de Nova Iorque e vinte chamadas não atendidas do Enzo. Deve ter descoberto que lhe levei o carro. Não oiço as mensagens de voz, mas percorro a longa fiada de mensagens de texto que me enviou.
Onde estás?
Tens o meu carro?
Levaste o meu carro!
Por favor, volta com o meu carro. Vamos conversar.
Não vás àquela cabana!
Onde estás? Muito preocupado.
Volta, por favor. Não vás à cabana. Eu amo-te.
Vou resolver isto. Volta.
E assim por diante.
As mensagens de texto continuam noite dentro. Passou metade da noite acordado, preocupado comigo. Devo-lhe uma explicação, ou ao menos dizer-lhe que estou bem. Por isso, envio-lhe uma mensagem:
Estou bem. No banco de trás de um carro da polícia agora mesmo. Não estou detida. O teu carro está em frente ao meu prédio.
A resposta do Enzo surge quase instantaneamente, como se estivesse a olhar para o telemóvel, à espera de uma mensagem minha:
Onde estavas?? ?????
Respondo-lhe:
Dormi no carro. Está tudo bem.
Três bolhas aparecem no ecrã enquanto escreve. Espero que diga que me ama ou que estava preocupado, ou talvez que me repreenda por lhe ter roubado o carro. Mas, em vez disso, diz algo extremamente inesperado:
A Wendy Garrick está morta. Vi nas notícias.
0 que? Como???
Suicidou-se.
74
Desta vez, a sala de interrogatório não parece tão assustadora.
Enquanto estava no carro-patrulha, devorei todos os artigos que pude encontrar sobre o suicídio da Wendy Garrick. Aparentemente, cortou a garganta ao namorado e depois engoliu um monte de comprimidos. Até deixou um bilhete de suicídio.
Isto dá uma dimensão completamente nova ao que aconteceu ao Douglas Garrick.
Há já cerca de meia hora que estou na sala quando o detetive Ramirez finalmente entra. Ainda traz a mesma expressão séria no rosto, mas já não parece tão ominoso. Parece apenas... perplexo.
– Olá, menina Calloway – diz, sentando-se na cadeira à minha frente.
– Olá, detetive – respondo.
As suas sobrancelhas juntam-se.
– Soube do que aconteceu à Wendy Garrick?
– Sim. Deu nas notícias.
– Deve saber – diz – que, no seu bilhete de suicídio, ela confessou também o homicídio do senhor Garrick. Permito-me um ligeiríssimo sorriso.
-Já não sou suspeita, então?
– Na verdade... – responde, recostando-se na sua cadeira de plástico, que range sob o seu peso. – Já tinha deixado de ser suspeita. Acontece que havia uma câmara na entrada das traseiras de que ninguém sabia. Examinámos as gravações e parece que a menina nunca esteve
sequer no prédio ao mesmo tempo que o senhor Garrick.
– Certo. A Wendy montou-me uma cilada.
Este tempo todo, havia uma câmara. Todo o pânico e stresse dos dois últimos dias... e a prova da minha inocência estava logo ali desde o começo.
Ele anui.
– É o que parece. Por isso, quero pedir-lhe desculpa. Compreende como poderíamos pensar que era a menina a responsável pelo homicídio.
– Claro. Tenho registo criminal, portanto, se um crime foi cometido, devo ter sido eu a fazê-lo.
Ramirez tem a graça de parecer envergonhado.
– É verdade que tirei algumas conclusões precipitadas, mas tem de admitir que as coisas não pareciam boas para o seu lado. E a Wendy Garrick insistia tanto em como tinha de ser a responsável.
Tem razão. Ela fez um bom trabalho ao armar-me a cilada. Mas, se tivesse sido um pouco mais esperta, não teria de o fazer de todo. Em última instância, a Wendy Garrick dificultou muito mais a sua própria vida do que necessitava. Podia ter aprendido muito comigo.
Ainda assim, toda esta experiência amargou-me. Ao longo dos anos, ajudei muitas mulheres e, apesar de as coisas nem sempre correrem conforme o planeado, sempre senti que estava a travar o bom combate. Quando me procuravam à procura de auxílio, nunca sentia qualquer hesitação em fazer o que estava certo.