Mas, agora, começo a questionar-me. A Wendy parecia verdadeiramente uma vítima. Depois desta experiência, vai ser difícil confiar na próxima pessoa que procurar a minha ajuda. E essa é uma das coisas por que mais rancor lhe guardo.
-Já não sou suspeita, então? – pergunto a Ramirez.
– Correto. No que me diz respeito, o caso está encerrado.
O Douglas está morto. Sabem que a Wendy foi a responsável. E também está morta. Não é necessária uma investigação, nem mais detenções ou um julgamento. Estou livre.
– Então, não compreendo. Por que estou aqui?
– Bem... – Ramirez esboça um sorriso acanhado. – Acontece que tem uma certa reputação.
– Reputação? – O meu estômago revolve-se ligeiramente. Isto não soa bem. – De quê?
– De heroína.
– De... desculpe?
– Reconheço que julgava estar a tentar ajudar a senhora Garrick – diz – porque já ajudou outras mulheres antes. E quero que saiba que é apreciado. Vemos algumas coisas más por aqui, e às vezes chegamos demasiado tarde às vítimas.
O seu comentário acerta em cheio. Fiz todos os possíveis para evitar que alguma vez fosse «demasiado tarde». E onde quer que o futuro me leve – como empregada doméstica ou como assistente social – vou continuar a fazê-lo.
– Eu... faço o melhor que posso com os recursos que tenho.
– Compreendo isso – sorri-me. – E só quero que saiba que me pode considerar mais um recurso. Quero que fique com o meu cartão e, se alguma vez vir alguma situação em que uma mulher esteja em perigo, quero que me ligue imediatamente. Escrevi o meu número de telemóvel na parte de trás. Desta vez, prometo que acreditarei em si.
Faz deslizar o cartão sobre a mesa. Agarro-o, olhando para o seu nome. Benito Ramirez. Finalmente – um amigo na polícia. Mal posso acreditar.
– Só para que fique claro, não está a fazer-se a mim, certo?
Atira a cabeça para trás e ri.
– Não. Sou demasiado velho para si. E parto do princípio de que esteja com aquele sujeito italiano que veio ontem à esquadra armar um escândalo por sua causa, sobre como tínhamos a pessoa errada e não sairia daqui enquanto não ouvíssemos o que tinha para dizer. Pensei que íamos ter de prender o homem.
Sorrio para comigo.
– A sério?
– Oh, sim. Na verdade, está lá fora agora mesmo. Recusa-se a sair da sala de espera enquanto não a vir.
– Bem, então – digo, ainda incapaz de apagar o sorriso do meu rosto (embora não esteja realmente a tentar) –, suponho que vou andando.
Quando me levanto, Ramirez faz o mesmo. Estende-me a mão e eu aperto-a. Em seguida, saio para ver o Enzo e ir finalmente para casa.
Epílogo
MILLIE
Três meses depois
Não compreendo como tinha o Enzo tanta coisa naquele seu pequeno estúdio.
Entra no meu apartamento com o que parece ser a sua caixa de pertences número dez milhões e deposita-a em cima de outra caixa. Sim, está bem, não é uma tortura ver o Enzo carregar caixas, os músculos dos seus braços intumescidos sob a sua T-shirt, mas, por amor de Deus, o que está em todas aquelas caixas? O homem parece alternar entre umas sete ou oito T-shirts e dois pares de calças de ganga. O que mais pode ter?
– É tudo? – pergunto-lhe, enquanto limpa o suor da testa.
– Não. Há mais duas.
– Mais duas!
Quase começo a arrepender-me disto. Bem, não propriamente. Depois de me separar do Brock, o Enzo e eu continuámos exatamente onde estávamos antes de ter partido para Itália. Só que, desta vez, ambos sabíamos que não podíamos viver um sem o outro. Assim, quando acabou por verificar que estava a desperdiçar o dinheiro da renda todos os meses, pois passava já todas as noites no meu apartamento, eu apressei-me a sugerir que viesse viver comigo.
É engraçado. Quando está certo, sabemos simplesmente que está certo.
– Duas caixas pequenas – diz o Enzo. – Não é nada.
– Hum – respondo. Não acredito nele. A sua definição de «caixa pequena» é tudo o que tenha um peso inferior ao meu.
Sorri-me.
– Desculpa ser tão irritante.
Não é irritante de todo. Na verdade, é a única razão por que me foi permitido ficar sequer neste apartamento. A senhora Randall continuava decidida a pôr-me no olho da rua, mesmo depois de eu ter sido completamente ilibada, mas o Enzo foi falar com ela e, de repente, passou a ter todo o gosto em deixar-me ficar. É bastante encantador.
O Enzo atravessa a sala para me envolver nos seus braços. Apesar de estar um pouco suado de carregar caixas de um lado para o outro entre os nossos apartamentos, não me importo. Deixo-o na mesma beijar-me. Sempre.
– Muito bem – diz, quando finalmente se afasta. – Vou buscar as outras caixas.
Gemo. Vamos ter de examinar essas caixas os dois juntos e de nos livrar de muita coisa. Além disso, tenho um plano para libertar algum espaço nas gavetas hoje.
Alguns minutos depois de o Enzo sair, ouve-se a campainha da porta de baixo. O Enzo falou em encomendar uma piza para o jantar, mas não creio que já tenha feito o pedido. O que significa que só uma pessoa pode estar lá em baixo.
Carrego no botão para o deixar subir.
Passado um minuto, oiço bater à minha porta. Agarro na caixa que estava em cima da minha cama e levo-a para a sala de estar. Mantenho-a equilibrada num braço enquanto abro a porta com o outro.
O Brock está à minha porta. Como sempre, veste um dos seus fatos caros, tem o cabelo perfeitamente arranjado, os dentes de um branco reluzente. É a primeira vez que o vejo em três meses, quase me esqueci de quão impecavelmente atraente é. Estou certa de que um dia será um marido maravilhoso para alguma mulher. Mas nunca iria ser eu.
– Olá – diz. – Tens as minhas coisas?
– Está tudo aqui mesmo.
Ergo a caixa para os braços expectantes do Brock. Quando estava a tentar abrir espaço para o Enzo, dei-me conta de que ainda tinha uma gaveta cheia de roupas e pertences aleatórios que o Brock tinha deixado para trás. Ponderei deitar simplesmente tudo fora, mas lembrei-me da forma como me avisou quando a polícia arranjou um mandado para a minha detenção e decidi ligar-lhe a perguntar se queria as suas coisas de volta. Respondeu-me que passaria por cá no dia seguinte.
– Obrigado, Millie – diz.
– Sem problemas.
O Brock hesita junto à porta.
– Pareces bem.
Oh, meu Deus, vamos jogar esse jogo?
– Obrigada. Tu também – respondo. E, porque não consigo evitar, continuo. – Andas a sair com alguém?
Abana a cabeça.
– Ninguém especial.
Não me faz a mesma pergunta, o que agradeço. Depois de todas as vezes que o recusei quando me pediu para ir viver com ele, seria cruel dizer-lhe que o Enzo vem viver comigo. E, apesar da forma como as coisas acabaram com o Brock quando me abandonou na esquadra, sei que me amava. Muito mais do que eu a ele.
– Bem... – Muda a caixa de um braço para o outro. – Boa sorte com... tudo.
– Para ti também. Vemo-nos por aí, suponho. – Não sei por que acrescentei esta última parte. Provavelmente, nunca mais o voltarei a ver.
Estou prestes a fechar a porta quando o Brock estende a mão para me deter.
– Oh, e Millie?
– Sim?
Sacode a caixa, olha para o conteúdo e depois ergue de novo o olhar para mim.
– O meu frasco extra de comprimidos está aqui dentro?
Cravo as unhas nas palmas das mãos.
– O quê?
– O meu frasco extra de digoxina – esclarece. – O que costumava manter no teu armário dos medicamentos para quando passava cá a noite. Ainda o tens? Costumo levar o frasco extra quando vou em viagem.
– Hã... – Cravo mais as unhas na pele. – Não, eu... Não o vi no armário dos medicamentos. Devo tê-lo deitado fora. Desculpa.
Sacode uma mão.
– Sem problemas. Alegro-me só por não te teres livrado da minha camisola de Yale.