Felizmente, está uma lista na porta do frigorífico que foi deixada para mim. É uma ementa impressa para a semana, incluindo receitas e instruções específicas para como fazer as compras. Parte do texto é manuscrito – parece ser uma caligrafia mais feminina, mas é difícil dizer. À medida que vou lendo as instruções, começo a ficar cada vez menos entusiasmada com o meu emprego:
0 patê deve ser comprado à terça-feira na Oliver’s Delicatessen antes das quatro da tarde.
Se só houver terrina disponível, não compre. Nesse caso, compre o patê no François.
0 patê deve ser servido em pão camponês obtido no London Market. Corte uma fatia e barre suavemente. Cubra com cornichos, obtidos no Sr. Royal.
A única coisa em que consigo pensar é: o que raio é patê? E o que são cornichons? Ao menos sei o que é pão. Mas por que tenho de ir a quatro lojas para comprar estes três produtos? E o Sr. Royal é uma pessoa ou um lugar?
O lado positivo é que pouco é deixado à imaginação. As receitas estão organizadas por data, por isso limito-me a procurar o dia de hoje e a começar a preparar o jantar desta noite de...
Galinha de caça da Cornualha. Bem, isto vai ser interessante.
Duas horas depois, tenho a roupa arrumada. A galinha
de caça da Cornualha está a assar no forno e cheira bastante bem, se me permitem que o diga. Já pus dois lugares à mesa da sala de jantar, por isso agora estou apenas na cozinha, sem fazer nada enquanto espero que a comida fique pronta. Com sorte, isso coincidirá com a hora da refeição, que é rigorosamente às sete da tarde.
Quando estou mesmo a abrir o forno para ver como está a galinha, as portas do elevador abrem-se com um rangido – ouvem-se a quilómetros de distância. Passos pesados descem o corredor, cada vez mais altos.
– Wendy! – é a voz de Douglas a ecoar pelo apartamento. – Wendy, cheguei!
Dirijo-me à entrada da cozinha e olho para a escadaria de acesso ao segundo andar. Espero um momento, à escuta do som da porta do quarto de hóspedes a abrir, esperando captar por fim um vislumbre da infame Sra. Garrick, mas não oiço nada.
– Olá. – Limpo as mãos às calças de ganga ao sair da cozinha. – O jantar está quase pronto, prometo.
Douglas está de pé na sala de estar, de olhos postos na escadaria.
– Excelente. Muito obrigado, Millie.
– Não tem de quê. – Sigo-lhe o olhar escadas acima. –Quer que vá buscar a senhora Garrick?
– Hum... – Olha para os dois lugares à mesa de jantar em carvalho ao estilo vitoriano, onde parece que se poderia ter servido a própria rainha. – Tenho um pressentimento de que não se vai juntar a mim esta noite.
– Quer que lhe leve um prato lá acima?
– Não é preciso. Eu levo – esboça um sorriso de esguelha. – Ainda deve estar a sentir-se em baixo, de certeza.
– É claro – murmuro. – Deixe-me ir tirar a comida do forno.
Apresso-me a regressar à cozinha para ver como está a comida. Tiro uma galinha de caça da Cornualha do forno e tem um aspeto bastante incrível. Quer dizer, tendo em conta que nunca a tinha cozinhado antes ou sequer ouvido falar nela a não ser de forma completamente teórica.
Demoro outros dez minutos a cortar a estúpida coisa de acordo com as instruções específicas, mas finalmente obtenho dois belos pratos de comida. Levo-os para a sala de jantar, mesmo a tempo de ver Douglas a descer o lanço de escadas.
– Como está ela? – pergunto ao pôr os pratos na mesa.
Por um momento, fica calado, como que a ponderar a resposta.
– Não é um bom dia.
– Lamento muito.
Encolhe um ombro.
– É o que é. Mas obrigado pela sua ajuda hoje, Millie.
– Sem problemas. Quer que leve o prato à senhora Garrick?
Não sei se é imaginação minha, mas os lábios de Douglas crispam-se ante a minha sugestão.
-Já se ofereceu, e eu disse que o faria, não foi?
– Sim, mas... – interrompo-me antes que diga algo estúpido. Deve achar que estou a ser metediça, e não está inteiramente enganado. – Enfim, tenha uma boa noite.
– Sim – responde vagamente. – Boa noite, Millie. Mais uma vez, obrigado.
Agarro no meu casaco e dirijo-me aos elevadores. Sustenho a respiração, esperando que as portas se fechem, e então deixo descair os ombros. Não sei o que é, mas há algo naquele apartamento que me faz sentir inquieta.
8
Talvez – diz o Brock – seja uma vampira. E não possa sair do quarto durante o dia ou transforma-se em pó.
Contei tudo ao Brock sobre a família Garrick e, durante uma bebida pós-jantar no seu apartamento, sugere-me algumas explicações nada úteis para o porquê de eu lá ter estado meia dúzia de vezes e Wendy Garrick nunca ter saído daquele quarto de hóspedes, apesar de eu ter a certeza de que está lá dentro. Aquela vez em que a porta se entreabriu foi o mais perto que estive de a ver.
– Não é uma vampira – digo, enfiando as pernas debaixo de mim no sofá do Brock.
– Não sabes isso.
– Sei. Porque os vampiros não existem.
– Um lobisomem, então?
Dou-lhe uma palmada no braço que quase o faz entornar o copo de vinho que tem na mão.
– Isso nem sequer faz sentido. Por que teria ela de ficar no quarto se fosse um lobisomem?
– Está bem, então talvez... – diz, pensativo. – Talvez tenha uma pequena fita verde à volta do pescoço e, se alguém a desatar, cai-lhe a cabeça?
Bebo um gole do vinho caro que o Brock me serviu. As garrafas caras são de longe melhores do que as baratas, mas nunca consigo detetar todas as notas subtis de melada ou lavanda ou seja lá o que for. Está sempre a perguntar-me, pelo que agora minto e digo-lhe que as consigo sentir, mas não consigo realmente. Estou a fingir o vinho.
– Tenho um pressentimento estranho – observo. – Só isso.
– Bem, já te dei todas as minhas melhores ideias – rodeando-me com o braço, puxa-me mais para si. – Portanto, se não é uma vampira, um lobisomem ou uma cabeça cortada, o que achas tu que se passa?
– Eu... – Pouso o meu copo de vinho na mesa de café e mordo o lábio inferior. – Sinceramente, não faço ideia. É só um mau pressentimento.
Por um momento, o Brock parece distraído, olhando para o meu copo quase cheio em cima da mesa.
– Não vais acabar isso?
– Não sei. Acho que não.
– Mas é um Giuseppe Quintarelli – diz, como se isso explicasse absolutamente tudo.
– Suponho que não tenho sede.
– Sede? – Parece traumatizado com a minha afirmação. – Millie, não se bebe vinho por se estar com sede.
– Está bem. – Agarro no copo e bebo outro gole. Às vezes, pergunto-me por que anda sequer comigo, além de, segundo diz, me achar bonita. Age como se tivesse imensa sorte por estar comigo. Mas isso é de loucos. Não sou eu o bom partido. Ele é que é. – Tens razão. É muito bom.
Acabo o resto do copo de vinho, mas a verdade é que passo todo esse tempo a pensar nos Garrick.
9
Adquiri o hábito de me pôr à escuta de cada vez que passo pela porta do quarto de hóspedes.
É bisbilhotar. Sei que sim – não o nego mas não consigo evitar. Há um mês que trabalho para os Garrick e ainda não conheci oficialmente Wendy Garrick. Ouvi ruídos vindos daquele quarto, ainda assim. E, em pelo menos três ocasiões, vi a porta entreaberta. Mas fechou-se sempre antes que eu me conseguisse apresentar.
Não seria um eufemismo dizer que a minha imaginação anda em roda viva. Vi muitas coisas estranhas nos meus anos a limpar casas. E muitas coisas más. Houve um período em que costumava tentar resolver algumas dessas coisas más. Mas há já muito tempo que não o faço.
Desde que o Enzo partiu.