Quando vou a descer o corredor, oiço nitidamente algo vindo do quarto de hóspedes. Geralmente, está tudo bastante sossegado lá dentro, pelo que isto é algo diferente. Paro, de aspirador na mão, e encosto o ouvido à porta. E desta vez consigo ouvir o som com muito mais clareza.
É um choro.
Está alguém a soluçar lá dentro.
Prometi a Douglas que não batia à porta. Mas, por alguma razão, vem-me à cabeça Kitty Genovese. Ainda que o Brock diga que toda a história foi um exagero, sei que acontecem coisas más quando as pessoas normais passam ao largo.
Assim, bato com os nós dos dedos na porta. Imediatamente, o choro cessa.
– Olá? – chamo. – Senhora Garrick? Sente-se bem?
Não obtenho resposta.
– Senhora Garrick? – repito. – Está bem?
Nada.
Tento uma tática diferente.
– Não saio daqui até ver que está bem. Fico aqui o dia inteiro, se for preciso.
E então fico ali parada, à espera.
Ao fim de alguns segundos, oiço passos suaves atrás da porta. Recuo um passo enquanto esta se entreabre uns cinco centímetros, até eu poder ver aquele olho verde a fitar-me. Com efeito, o branco do olho está manchado por veias vermelhas e a pálpebra está inchada.
– O. Que. Quer? – silva-me a proprietária do olho.
– Sou a Millie – digo. – A sua empregada de limpeza.
Não reage a isso.
– E ouvi chorar – acrescento.
– Estou bem – responde firmemente.
– Tem a certeza? Porque eu...
– Estou certa de que o meu marido lhe disse que não me tenho andado a sentir bem. – O seu tom é seco. – Só quero descansar.
– Sim, mas...
Antes que eu possa dizer mais uma palavra, Wendy Garrick fecha-me a porta na cara. Lá se vai a minha intenção de chegar a ela. Pelo menos tentei.
Pesadamente, volto a descer as escadas, arrastando o aspirador comigo. Estou a perder o meu tempo ao tentar sequer envolver-me. Sempre que falo no assunto ao Brock por estes dias, diz-me que tenho de me meter na minha vida.
Estou a guardar o aspirador quando as portas do elevador se abrem com um rangido. Douglas entra na sala de estar, a assobiar baixinho, com outro dos seus fatos dolorosamente caros. Segura um ramo de rosas numa mão e uma caixa retangular azul na outra.
– Olá, Millie. – Parece estranhamente alegre, tendo em conta que a mulher está no andar de cima a soluçar. –Como vai isso? Está quase a terminar?
– Sim... – Não sei bem se devo dizer-lhe o que ouvi. Mas, se a mulher dele está a chorar, deve querer saber, não? – A sua mulher parece um pouco em baixo. Ouvi-a a chorar no quarto.
Manchas vermelhas surgem-lhe nas maçãs do rosto.
– Não... falou com ela, pois não?
Não quero mentir, mas, ao mesmo tempo, disse-me explicitamente para não incomodar a Wendy.
– Não, é claro que não.
– Ótimo. – Os seus ombros relaxam. – É melhor deixá-la simplesmente em paz. Como disse, não está bem.
– Sim, já tinha referido isso...
– E... – Ergue a caixa retangular azul. – Tenho um presente para ela. – Pousa as flores para poder abrir a caixa de veludo e ergue-a para eu poder espreitar o interior. –Acho que vai adorar isto.
Olho para o conteúdo da caixa. É a pulseira mais bela que alguma vez vi, cravejada de diamantes perfeitos.
– Está gravada – diz com orgulho.
– De certeza que vai adorar.
Douglas agarra nas flores e começa a subir as escadas. Vejo-o desaparecer pelo corredor, seguindo-se o som de uma porta a abrir e a fechar.
Não consigo perceber esta situação. Douglas parece um marido maravilhoso e dedicado. Wendy, por outro lado, nunca sai do quarto. Talvez saia quando eu não estou por perto, mas nunca lhe vi sequer o rosto completo, a não ser nas fotografias.
Há algo de anormal nesta situação, e eu não sei o que é.
Mas, como diz o Brock, não tenho nada a ver com isso. Devia simplesmente esquecer.
10
Passa por cá esta noite?
Apesar de já ter combinado com Douglas passar esta noite pela penthouse para levar as compras e limpar, confirma sempre com uma mensagem de texto. É extremamente organizado. Tendo em conta o que me estão a pagar, respondo sempre de imediato.
Sim, estarei aí!
Não tenho aulas hoje, pelo que a minha tarde consistirá em ir às compras para os Garrick, seguindo depois para casa deles para lhes limpar a sujidade invisível e preparar o jantar. Há já bem mais de um mês que trabalho para a família e conheço a rotina. Tenho a lista de compras na mão, mas preciso de ir a Manhattan para adquirir tudo o que querem.
Ontem à noite, o Brock pediu-me para ficar em casa dele, e tenho vindo a passar lá muitas noites, pois vive muito perto do apartamento e bastante perto da universidade, mas essa é ainda mais uma razão para dizer não. Se passar mais tempo no seu apartamento, estaremos basicamente a viver juntos. E isso é algo que não posso fazer.
Não ainda, pelo menos. Não até lhe dizer a verdade. Merece ao menos isso.
Mas tenho medo. Medo de que o Brock se passe e me largue na hora se souber tudo sobre mim. E tenho ainda mais medo de que, quando os seus pais ricos e de classe alta descobrirem, o convençam a deixar-me. O Brock é perfeito, a sua família é perfeita, e eu estou tão longe da perfeição que nem sequer tem graça.
A minha última relação foi o oposto de perfeita. E, de alguma forma, isso parecia-me mais adequado. Não sei muito bem o que diz a meu respeito que o meu par ideal fosse um indivíduo como o Enzo Accardi.
O Enzo e eu começámos há quatro anos como amigos, depois de um emprego meu ter acabado de forma extremamente inesperada. Não tinha muitos amigos, pelo que fiquei obscenamente grata pelo seu apoio. Chegámos a um ponto em que passávamos quase todo o nosso tempo livre juntos, além de que ajudámos cerca de uma dúzia de mulheres a escapar das suas relações abusivas. Muitas vezes, tratava-se apenas de obter os recursos adequados, mas noutras tínhamos de ser criativos. O Enzo fazia contactos que lhe permitiam obter novas identidades, telemóveis pré-pagos que não podiam ser localizados e bilhetes de avião para destinos distantes. Tirávamos mulheres das suas relações tóxicas sem termos de recorrer à violência.
Bem, não, isso não é verdade. Para ser inteiramente sincera, houve algumas vezes em que as coisas ficaram um pouco... complicadas. O Enzo e eu combinámos nunca mais falar dessas ocasiões. Fizemos o que tínhamos de fazer.
Foi o Enzo quem me convenceu a voltar para a universidade para tirar uma licenciatura em serviço social. Mal sabia eu que me estava a pôr no caminho para uma vida normal que eu jamais sonhara ser possível para mim. Mesmo com o meu registo criminal, podia conseguir um emprego como assistente social. Podia fazer o que adorava dentro dos limites da lei.
O Brock gosta de dizer que nós os dois fazemos uma boa equipa. Talvez seja verdade. Mas o Enzo e eu éramos realmente uma boa equipa: trabalhávamos juntos. Tínhamos uma missão. Além disso, era amável, apaixonado e muito atraente. Sobretudo esta última característica – por mais que tentasse ser sua amiga, era difícil não estar agudamente ciente dos seus atributos mais superficiais. Na altura, odiava estar a desenvolver uma frustrante paixoneta pelo homem.
Então, certa noite, estava no seu apartamento, a partilhar uma caixa de piza entregue pelo nosso restaurante preferido (também, por coincidência, o mais barato). Tínhamos os nossos ingredientes preferidos na piza: pepperoni e extra queijo. Lembro-me de o Enzo beber um longo gole da sua garrafa de cerveja e sorrir na minha direção, isto é agradável, disse.
Sim, concordei. É mesmo agradável.
Pousou a sua cerveja na mesa de café. Depois de todas as casas que limpara, sentia uma ligeira vertigem sempre que alguém não Usava uma base. Gosto de passar tempo contigo, Millie.
Não tinha muita experiência com homens, mas a forma como me olhava era inconfundível. E, se dúvidas houvesse, dissiparam-se quando se inclinou para mim e me deu um longo e demorado beijo, com que soube que iria sonhar durante anos no futuro. E, quando os nossos lábios finalmente se separaram, sussurrou: Talvez possamos passar mais tempo juntos?