— Eu trarei de volta.
— Eu também vou.
Porquinho ficou atrás dele, ilhado num mar de cores sem significado, enquanto Ralph ajoelhava-se e enfocava o círculo brilhante. Assim que a fogueira foi acesa, Porquinho estendeu as mãos e pegou os óculos.
Ante as flores fantasticamente atraentes — violetas, vermelhas e amarelas — a discórdia desapareceu. Tornaram-se um círculo de meninos em volta de uma fogueira de acampamento e até Porquinho e Ralph se sentiram meio atraídos. Logo, alguns dos meninos estavam correndo encosta abaixo em busca de mais lenha, enquanto Jack cortava o porco. Tentaram manter a carcaça inteira numa estaca sobre o fogo, mas a madeira se queimava antes que o porco começasse a assar. Afinal, enfiaram pedaços de carne em ramos e os colocaram nas chamas: mesmo assim, os meninos quase se assaram tanto quanto a carne.
Ralph avançou, hesitante. Pretendia recusar a carne, mas depois de uma dieta de frutas e nozes, com um raro caranguejo ou peixe, sua resistência era mínima. Aceitou um pedaço de carne meio crua e enfiou os dentes nela, como um lobo.
Porquinho falou, também hesitante.
— Não vai ter nada para mim?
Jack pretendia deixá-lo na dúvida, como demonstração de força, mas como Porquinho previra a omissão, era necessário um pouco mais de crueldade.
— Você não caçou.
— Ralph também não — disse Porquinho, em tom de choro —, nem Simon. — Falou mais alto: — Os caranguejos que a gente come só têm um pouquinho de carne.
Ralph mexeu-se, contrafeito. Simon, sentado entre os gêmeos e Porquinho, esfregou a boca e passou seu pedaço de carne para Porquinho, sobre as pedras. Ele o pegou. Os gêmeos deram uma risadinha e Simon abaixou a cabeça, envergonhado.
Então Jack ficou de pé num salto, cortou um grande pedaço de carne e jogou-o aos pés de Simon.
— Coma! Seu desgraçado!
Olhou furioso para Simon.
— Pegue!
Girou nos calcanhares, centro de um confuso círculo de meninos.
— Eu trouxe carne para vocês!
Inúmeras e inexprimíveis frustrações combinaram-se para fazer sua fúria primitiva inspirar um respeito atemorizado.
— Eu pintei o rosto... rastejei. Agora comam... vocês todos... e eu...
Lentamente o silêncio no cume da montanha foi crescendo até se poder ouvir o crepitar da fogueira e o débil silvar da carne assando. Jack olhou em volta, buscando compreensão, mas só encontrou respeito. Ralph estava de pé entre as cinzas da fogueira de sinalização, as mãos cheias de carne, sem dizer nada.
Então, finalmente, Maurice quebrou o silêncio. Mudou de assunto para o único tema que poderia reunir uma maioria.
— Onde vocês acharam o porco?
Roger apontou para o lado inimigo.
— Estava ali, perto do mar.
Jack, recuperando-se, não pôde suportar ouvir outro contando a sua história. Falou depressa.
— Espalhamo-nos ao redor. Rastejei, com as mãos e os joelhos. As lanças caíam porque não tinham pontas. O porco correu e fez um barulho terrível...
— Virou-se e correu em círculos, sangrando...
Todos os meninos falavam ao mesmo tempo, aliviados e excitados.
— Fechamos o cerco...
O primeiro golpe paralisara a parte traseira, então fecharam o círculo e golpearam, golpearam...
— Cortei a garganta do porco...
Os gêmeos, ainda compartilhando seu sorriso idêntico, pularam e correram um em volta do outro. Então, o resto se juntou a eles, gritando e fazendo ruídos como os do porco morrendo.
— Uma na cabeça!
— Acerte uma pra valer!
Então, Maurice fingiu ser o porco e correu guinchando para o meio; os caçadores, cercando-o, brincaram de golpeá-lo. Dançavam e cantavam.
Matem o porco! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
Ralph ficou olhando, com inveja e ressentimento. Não falou até que se cansassem e o canto morresse.
— Vamos fazer uma reunião.
Um a um, pararam e ficaram olhando para ele.
— Com a concha. Vamos fazer uma reunião, mesmo que tenha de ser no escuro. Lá embaixo, na plataforma. Quando eu tocar. Já.
Virou-se e se afastou, montanha abaixo.
5
Bicho da água
A maré subia e só havia uma estreita faixa de praia firme entre a água e a areia branca e solta perto do terraço de palmeiras. Ralph escolheu o caminho da faixa firme porque precisava pensar: só ali ele podia deixar os pés avançarem sem precisar olhar para eles. De repente, caminhando à beira da água, sentiu-se tomado de espanto. Descobriu que compreendia o aborrecimento daquela vida, onde todo caminho era improvisado e uma parte considerável do tempo em que se estava desperto era passado olhando onde pisar. Parou, de frente para a praia, lembrando-se daquela primeira exploração entusiasmada, como se fizesse parte de uma infância mais brilhante, e sorriu sarcasticamente. Virou-se e retrocedeu até a plataforma, com o sol no rosto. Chegara a hora da reunião e enquanto caminhava, envolto nos esplendores cada vez mais decadentes de sol, reviu cuidadosamente os pontos da sua fala. Não deveria haver erros nessa reunião, nada de perseguir coisas imaginárias...
Perdeu-se num labirinto de pensamentos que não se definiam — faltavam-lhe palavras com que os pudesse expressar. Franzindo a testa, tentou novamente.
Essa reunião não seria divertida, mas uma coisa séria.
Passou a andar mais depressa, consciente tanto da necessidade de se apressar quanto do sol que se punha e do vento que soprava no seu rosto, criado pela sua própria velocidade. Esse ventinho fazia a camisa cinza colar-se no seu peito e ele notou — na sua nova disposição de compreender — que as fraldas estavam duras como papelão e desagradáveis; percebeu também como as barras esfarrapadas da calça estavam deixando uma marca rosada e desconfortável na frente das suas coxas. Com um espasmo mental, Ralph descobriu sujeira e decadência; entendeu o quanto detestava ficar sempre puxando o cabelo emaranhado que lhe caía nos olhos e, enfim, quando o sol se punha, ficar rolando ruidosamente para dormir entre folhas secas. Pensando nisso, começou a correr.
A praia perto da “piscina” estava cheia de grupos de meninos esperando a reunião. Abriram caminho para ele, silenciosamente, conscientes do seu mau humor e do erro da fogueira.
O lugar de reunião onde ele estava era mais ou menos um triângulo, embora irregular e incompleto, como tudo que haviam feito. Primeiro, havia o tronco em que se sentou; uma árvore morta que deveria ter sido excepcionalmente grande para a plataforma. Talvez tivesse sido trazida até ali por uma daquelas lendárias tempestades do Pacífico. Esse tronco de palmeira jazia paralelo à praia, de modo que quando Ralph se sentou, ficou de frente para a ilha — mas, para os meninos, ele era uma figura escura contra o brilho da lagoa. Os dois lados do triângulo cuja base era o tronco eram meio indefinidos. À direita, havia um tronco polido por traseiros irrequietos na parte superior, mas não tão grande quanto o do chefe, nem tão confortável. À esquerda havia quatro troncos pequenos; um deles — o mais distante — estava lamentavelmente empenado. Uma após outra as reuniões tinham sido interrompidas por gargalhadas, quando alguém se inclinava demais para trás e o tronco virava, jogando meia dúzia de meninos de costas na grama. Mas, agora, pensava que ninguém tivera o expediente — nem ele, nem Jack, nem Porquinho — de trazer uma pedra e escorar a coisa. Então eles iriam continuar a suportar o assento desequilibrado porque, porque... Outra vez se perdeu em águas profundas demais.