Jack pulou na areia.
— A dança! Vamos! Dancem!
Correu, tropeçando pela areia funda até o espaço de pedra além da fogueira. Entre os raios, o ar estava escuro e terrível; os meninos seguiram-no aos gritos. Roger tornou-se o porco, guinchando e investindo contra Jack, que se desviou. Os caçadores pegaram as lanças, os cozinheiros seguraram seus espetos e os outros, pedaços de lenha. Começou o canto e um movimento de cerco. Enquanto Roger imitava o terror do porco, os pequenos corriam e saltavam fora do círculo. Porquinho e Ralph, sob a ameaça do céu, sentiam-se ansiosos para tomar parte nessa sociedade demente, mas parcialmente segura. Gostariam de tocar os ombros bronzeados no círculo, que encerrava o terror e o domava.
Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
O movimento tornou-se regular, o canto perdia sua excitação inicial e superficial, e se tornava compassado como um firme pulsar. Roger parou de ser o porco e virou um caçador, deixando vazio o centro do círculo. Alguns dos pequenos fizeram um círculo próprio e os círculos complementares se fecharam e giraram, como se a repetição pudesse extrair segurança de si própria. Era como a pulsação e a agitação de um único organismo.
O céu escuro foi fendido por uma cicatriz branco-azulada. Um momento após, o barulho estava sobre eles, como o golpe de um chicote gigantesco. O canto subiu de tom, agonizando.
Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
Agora, do terror, irrompeu outro desejo, denso, urgente, cego.
Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
De novo, a cicatriz branco-azulada abriu-se sobre eles e a explosão sulfurosa desabou. Os pequenos gritaram e correram loucamente, fugindo da beira da floresta; um deles, de puro pavor, chegou a romper o círculo dos grandes.
— É Ele! É Ele!
O círculo tornou-se uma ferradura. Uma coisa rastejava para fora da floresta. Era escura, indefinida. O grito agudo que surgiu ante o bicho parecia de dor. O bicho precipitou-se na ferradura.
Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue! Acabem com ele!
As lanças caíram e a boca do novo círculo tremulou e gritou. O bicho estava de joelhos no centro, os braços levantados sobre o rosto. Gritava — contra o ruído abominável — algo sobre um cadáver na montanha. O bicho tentou avançar, rompeu o círculo e caiu do lado íngreme da pedra, na areia à beira da água. Imediatamente, todos o seguiram correndo, saltando da pedra, pulando no bicho, gritando, golpeando, mordendo, rasgando. Não havia palavras, nem movimentos além do ataque dos dentes e das garras.
Então, as nuvens se abriram e a chuva caiu como uma cachoeira. A água despejou-se do cimo da montanha, arrancou folhas e ramos das árvores, caiu como uma ducha fria na massa que lutava na areia. A massa se rompeu, algumas figuras se afastaram dela. Só o bicho ficou imóvel, a poucos metros do mar. Até sob a chuva podiam ver como o bicho era pequeno: seu sangue já estava manchando a areia.
Um vento forte levou a chuva para um lado e para o outro, fazendo a água cascatear nas árvores da floresta. No cimo da montanha, o paraquedas inchou-se, mexeu-se: a figura resvalou, ficou de pé, girou, desceu, oscilando, na vastidão do ar chuvoso e roçou com seus pés inertes as copas das árvores mais altas; caindo, caindo sempre, rumou para a praia e os meninos fugiram, gritando na escuridão. O paraquedas levou a figura para a frente, abrindo um sulco na lagoa e a fez passar por cima do recife, mar afora.
Por volta da meia-noite, a chuva parou, as nuvens sumiram, o céu se encheu novamente com as incríveis lâmpadas das estrelas. O vento também amainou e o único barulho era o das gotas e fios de água que corriam pelas gretas e caíam, pingo a pingo, na terra marrom da ilha. O ar estava frio, úmido e limpo; afinal, até o barulho da água parou. O bicho jazia abatido na praia pálida e as manchas aumentaram, centímetro a centímetro.
A beira da lagoa tornou-se uma faixa fosforescente que avançava aos poucos, à medida que fluía a grande onda da maré. A água clara refletia o céu claro e as brilhantes constelações angulares. A linha de fosforescências enfiou-se pelos grãos de areia e pequenos seixos; sustentou-os numa ondulação de tensão, depois aceitou-os subitamente com uma sílaba inaudível e prosseguiu.
Ao longo da linha de charcos da costa, a claridade progressiva estava cheia de estranhas criaturas de corpos banhados de luar, com olhos ardentes. Aqui e ali uma pedrinha maior cobria-se com um manto de pérolas. A maré subia sobre a areia marcada pela chuva e suavizava tudo com uma camada de prata. Tocou a primeira das manchas que se originavam no corpo dilacerado e as criaturas formaram uma silhueta móvel de luz enquanto se reuniam na beira da água. A maré subiu mais e vestiu com seu brilho o cabelo crespo de Simon. A linha da sua face ficou de prata e a curva do seu ombro tornou-se mármore esculpido. As estranhas e expectantes criaturas, com seus olhos ardentes e rastejando entre o vapor, atarefavam-se em volta da cabeça. O corpo subiu a uma fração de centímetro do chão e uma bolha de ar escapou da boca com um “plop” úmido. Depois, virou-se suavemente na água.
Em alguma parte sobre a curva escurecida do mundo, o sol e a lua estavam agindo. A camada de água sobre o planeta cresceu, inchando ligeiramente num lado, enquanto o núcleo sólido girava. A grande onda da maré avançou ilha adentro e a água subiu. Lentamente, cercado por uma franja de inquisitivas criaturas brilhantes, ele próprio uma forma prateada sob as imutáveis constelações, o corpo morto de Simon moveu-se rumo ao alto-mar.
10
A concha e os óculos
Porquinho olhou cuidadosamente para a figura que avançava. Agora, estava percebendo que via mais claramente se tirasse os óculos e colocasse a única lente no outro olho; mas, mesmo pelo olho bom, após o que acontecera, Ralph continuava inconfundivelmente Ralph. Saiu dos coqueiros, mancando, sujo, com folhas mortas presas na massa de cabelo louro. Um dos olhos era uma fenda na face inchada e havia uma grande casca de ferida no joelho direito. Parou um instante e fixou a figura na plataforma.
— Porquinho? Só ficou você?
— Há alguns pequenos.
— Não contam. Nenhum grande?
— Oh... Sameeric. Foram pegar madeira.
— Ninguém mais?
— Não que eu saiba.
Ralph subiu cuidadosamente para a plataforma. A grama murcha ainda aparecia onde costumava haver reuniões; a frágil concha branca ainda brilhava no assento polido. Ralph sentou-se na grama diante do lugar do chefe e da concha. Porquinho agachou-se ao seu lado e houve um longo momento de silêncio.
Afinal, Ralph limpou a garganta e sussurrou algo.
Porquinho sussurrou de volta.
— O que você disse?
Ralph falou.
— Simon.
Porquinho não disse nada, mas assentiu, gravemente. Continuaram sentados ali, contemplando, sem ver, o lugar do chefe e a lagoa brilhante. A luz verde e as lustrosas manchas de sol brincavam nos seus corpos sujos.
Ralph levantou-se e foi até onde estava a concha. Pegou-a, acariciando-a com as duas mãos e se ajoelhou, apoiado no tronco.
— Porquinho?
— Hum?
— Que vamos fazer?
Porquinho mostrou a concha.
— Você poderia...
— Fazer uma reunião?
Ralph riu asperamente ao dizer isto e Porquinho franziu a testa.