Rhea Avin não era refugiada, apesar de usar uma imitação de vestido taraboniano em lã de trama fina, com delicados pregueados cinza que moldavam e revelavam quase tanto quanto a vestimenta delgada de Sharmad. Os que sobreviviam à dura viagem traziam mais do que rumores preocupantes, habilidades nunca vistas em Dois Rios e braços para trabalhar nas fazendas despovoadas pelos Trollocs. Rhea era bonita, de rosto redondo e nascera a menos de duas milhas de onde ficava o solar. Usava os cabelos escuros em uma trança da grossura de um punho que descia até a cintura. Em Dois Rios, as moças só trançavam os cabelos quando o Círculo das Mulheres considerava que estavam em idade de se casar, fosse aos quinze anos ou aos trinta, embora poucas passassem dos vinte. Rhea era cerca de cinco anos mais velha que Faile e trançava os cabelos havia quatro anos, mas, naquele momento, parecia ainda usá-los soltos e ter acabado de reparar que a ideia esplêndida de outrora era de fato a coisa mais burra que poderia ter feito. Aliás, Sharmad parecia ainda mais envergonhada, pois tinha um ano ou dois a mais que Rhea. Para uma domanesa, deveria ser humilhante encontrar-se em tal situação. Faile queria estapear a cara das duas, mas uma lady não podia fazer tal coisa.
— Um homem — disse ela, no tom mais firme possível — não é um cavalo nem um pedaço de terra. Nenhuma de vocês pode tê-lo como propriedade. E vir aqui me perguntar qual das duas tem direito a ele… — Faile soltou um suspiro lento e profundo. — Se eu achasse que Wil al’Seen estivesse seduzindo as duas, poderia ter algo a dizer a respeito. — Wil tinha um fraco pelas mulheres, e elas, por ele, com suas panturrilhas bem torneadas. Mas o sujeito nunca fazia promessas. Sharmad parecia prestes a desabar. Afinal, as domanesas é que tinham reputação de levar os homens na lábia, não o contrário. — Sendo assim, meu julgamento é o seguinte: vocês duas irão até a Sabedoria para explicar o assunto a ela, não deixem nenhum detalhe de fora. Daise vai cuidar disso. Espero que antes do cair da noite tenha notícias de que já estiveram com ela.
As duas se encolheram. Daise Congar, a Sabedoria de Campo de Emond, não toleraria esse tipo de bobagem. Faria até muito mais do que apenas não tolerar. Contudo, as duas se curvaram em mesuras, murmurando “sim, milady” em um uníssono desesperado. Se já não estivessem, dentro em breve se arrependeriam amargamente por fazerem Daise perder tempo com elas.
E eu, pensou Faile, com firmeza. Todos sabiam que era raro Perrin comparecer às audiências, ou as duas jamais teriam trazido um “problema” tão idiota. Se ele estivesse ali, ocupando seu lugar, as mulheres teriam saído de fininho em vez de revelarem aquilo. Faile desejou que o calor tivesse deixado Daise bem irritadiça. Era pena que não havia como fazê-la dar uma lição em Perrin também.
Cenn Buie ocupou o lugar das mulheres quase antes que as duas saíssem do caminho, arrastando os pés. Apesar de se apoiar bastante em um cajado quase tão velho quanto ele próprio, o homem conseguiu se curvar em uma mesura floreada — então estragou o movimento correndo os dedos ossudos pelos cabelos ralos e finos. Como de costume, parecia ter dormido com o casaco marrom grosseiro.
— Que a Luz brilhe sobre a senhora, Lady Faile, e sobre seu honrado marido, Lorde Perrin. — As palavras grandiosas soavam estranhas naquela voz esganiçada. — Permita que eu acrescente meus votos de contínua felicidade a todos do Conselho. Sua beleza e inteligência iluminam a vida de todos nós, bem como a justiça em seus pronunciamentos.
Faile tamborilou os dedos no braço da cadeira antes que pudesse se deter. Elogios e floreios, em vez dos resmungos azedos de sempre. A lembrança, com o devido respeito, de que ele ocupava uma cadeira do Conselho da Aldeia de Campo de Emond e era um homem de influência. E aquele cajado para suscitar compaixão… O telhador era ágil como qualquer um com metade da sua idade.
— O que o senhor me traz hoje, Mestre Buie?
Cenn se endireitou, sem se lembrar de escorar na bengala. E sem se lembrar de eliminar o tom mordaz da voz.
— São todos esses forasteiros chegando aos montes, trazendo uma porção de coisa que a gente não quer por aqui. — O homem parecia ter esquecido que ela também era forasteira. A maior parte do povo de Dois Rios esquecera. — Costumes estranhos, milady. Roupas indecentes. As mulheres vão vir falar sobre as vestimentas dessas domanesas atiradas, isso se já não tiverem vindo. — De fato, algumas já tinham reclamado, embora uma centelha nos olhos de Cenn revelasse que ela se arrependeria caso cedesse às demandas. — Estranhos roubando comida de nossas bocas, tomando nossos negócios. Aquele rapaz taraboniano e suas telhas idiotas, por exemplo. Ocupando mãos que poderiam estar fazendo algum trabalho útil. Ele não se importa com o povo de Dois Rios. Ora, ele…
Abanando-se, Faile parou de escutar, mas teve o cuidado de dar impressão de que prestava muita atenção — uma habilidade que o pai lhe ensinara, necessária em momentos como esse. Claro. As telhas de Mestre Hornval concorreriam com os telhados de palha de Cenn.
Nem todos se sentiam como Cenn em relação aos recém-chegados. Haral Luhhan, o ferreiro de Campo de Emond, fizera uma parceria com um cuteleiro domanês e um polidor de metais da Planície de Almoth, e Mestre Aydaer contratara três homens e duas mulheres que entendiam de marcenaria, escultura e até de douradura — embora decerto não houvesse ouro para tanto. As cadeiras dela e de Perrin eram trabalho desse grupo, tão caprichadas quanto Faile encontrara em outras cortes. Aliás, o próprio Cenn contratara cerca de meia dúzia de ajudantes, nem todos de Dois Rios, pois muitos telhados tinham pegado fogo no ataque dos Trollocs, e novas casas eram erguidas para todos os lados. Perrin não tinha o direito de fazê-la ouvir toda aquela bobagem sozinha.
O povo de Dois Rios podia até tê-lo proclamado lorde — o que era o certo a se fazer, depois que Perrin os levou à vitória sobre os Trollocs —, e ele podia até estar começando a perceber que não seria capaz de mudar esse fato — como decerto deveria ter tentado assim que começaram a se curvar em reverências e chamá-lo de Lorde Perrin, a despeito de ele pedir que não o fizessem —, mas ainda assim se recusava a aceitar as pompas que vinham com o título de lorde, tudo o que um povo esperava de seus lordes e ladies. Pior ainda: se recusava a cumprir os deveres de lorde. Faile sabia muito bem o que devia ser feito, já que era a filha mais velha que restara de Davram t’Ghaline Bashere, Lorde de Bashere, Tyr e Sidona, Guardião da Fronteira da Praga, Defensor da Terra do Coração, Marechal-General da Rainha Tenobia de Saldaea. Era verdade que fugira para se tornar Caçadora da Trombeta — e aberto mão disso por um marido, o que às vezes ainda a surpreendia —, mas ainda se lembrava. Perrin escutava quando ela tentava explicar, até assentia nos momentos oportunos, mas obrigá-lo a de fato fazer qualquer coisa era como obrigar um cavalo a dançar a sa’sara.
Cenn enfim parou de balbuciar, finalmente lembrando-se de engolir a injúria que fervilhava entre seus dentes.
— Perrin e eu decidimos usar palha — comentou Faile, muito calma. Enquanto Cenn ainda assentia, satisfeito, acrescentou: — E o senhor ainda não terminou o trabalho. — O velho levou um susto. — Parece que aceitou fazer mais telhados do que é capaz de dar conta, Mestre Buie. Se não terminar o nosso logo, temo que precisaremos chamar o Mestre Hornval para colocar suas telhas. — Cenn contraiu os lábios, quieto. Se Faile pusesse telhas na mansão, outros fariam o mesmo. — Aprecio seu discurso, mas tenho certeza de que o senhor prefere terminar meu telhado do que perder tempo com conversa mole, apesar de agradável.