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Pensar em Perrin fez Faile relembrar a promessa que fizera a si mesma. O leque de penas abanou mais depressa. Aquele não fora o dia das piores bobagens, nem o pior momento com as Sabedorias — ninguém perguntara quando Lorde Perrin teria um herdeiro, graças à Luz! —, mas talvez o calor impiedoso tivesse sido a gota d’água. Perrin cumpriria sua obrigação, ou…

Um trovão ressoou pela mansão, e relâmpagos iluminaram as janelas. Faile encheu-se de esperança. Se a chuva viesse…

Correu sem fazer barulho com os pés calçados nas sandálias, procurando pelo marido. Queria compartilhar a chuva com ele. E ainda pretendia dizer algumas palavrinhas duras. Mais do que algumas, se preciso.

Perrin estava onde ela tinha imaginado: bem lá em cima, no terceiro andar, no alpendre frontal — um homem de cabelos cacheados vestido em um casaco marrom liso, com ombros e braços robustos. Tinha as costas largas viradas para ela e se apoiava em uma das colunas de sustentação da cobertura. Encarava o chão de um dos lados do solar, não o céu. Faile parou à porta.

Outro trovão ressoou, e um raio azul rasgou o céu. Um raio sem trovão em um céu sem nuvens. Não era prenúncio de chuva. Nada de chuva para aliviar o calor. Gotículas de suor brotavam em seu rosto, mas ela tremia.

— Acabou? — perguntou Perrin, e Faile se sobressaltou.

O marido não levantara a cabeça. Às vezes era difícil lembrar-se de como sua audição era sensível. Ou ele poderia ter sentido o cheiro de Faile — torceu para que fosse o perfume, não o suor.

— Achei que você estaria com Gwil ou Hal.

Aquele era um dos maiores defeitos de Perrin. Faile tentava treinar serviçais, mas ele os considerava companhia adequada para tomar uma caneca de cerveja e dar umas risadas. Pelo menos não ficava atrás de qualquer rabo de saia, como tantos homens. Nunca sequer percebera que Calle Coplin começara a trabalhar na casa deles com o intuito de fazer mais do que arrumar a cama de Lorde Perrin. E nem mesmo notara quando Faile pôs Calle para fora com um punhado de gravetos.

Ao aproximar-se do marido, viu para o que ele estava olhando. Dois homens despidos até a cintura praticavam esgrima com espadas de madeira, mais abaixo. Tam al’Thor era robusto e grisalho, e Aram, magro e jovem. Aram estava aprendendo depressa. Muito depressa. Tam já fora soldado, além de mestre espadachim, mas Aram pareceria estar dando trabalho.

Sem nem pensar, ela baixou os olhos para as tendas agrupadas em um campo cercado de pedras a meia milha na direção da Floresta do Oeste. O restante dos latoeiros estava acampado entre carroções — ainda não acabados — que pareciam casinhas sobre rodas. Naturalmente, já não reconheciam a presença de Aram desde que ele empunhara a espada. Os Tuatha’an não praticavam violência, por qualquer motivo que fosse. Faile se perguntou se iriam embora quando os carroções incendiados pelos Trollocs fossem substituídos, conforme o planejado. Não somavam mais de cem, mesmo depois de reunidos todos os que estavam escondidos na mata. Decerto iriam, deixando Aram para trás, como ele próprio escolhera. Nunca ouvira falar de algum Tuatha’an fixando moradia em qualquer lugar que fosse.

Por outro lado, o povo de Dois Rios costumava dizer que, por ali, nada nunca mudava, ainda que muita coisa tivesse mudado desde os Trollocs. Campo de Emond, a algumas centenas de passadas da mansão, aumentara em tamanho, e sua população já reconstruíra todas as casas incendiadas, além de começar a erguer novas moradias. Algumas até eram de tijolos, outra novidade. E algumas tinham telhados de telha. Na velocidade com que as novas habitações estavam sendo erigidas, a mansão logo estaria dentro da aldeia. Muito se falava a respeito de um muro, caso os Trollocs retornassem. Mudanças. Um punhado de crianças corria pelas ruas atrás do gigantesco Loial. Poucos meses antes, a visão do Ogier, da altura de um homem e meio, com as orelhas peludas e o nariz tão largo que quase ocupava o rosto inteiro, deixara todas as crianças embasbacadas, e as mães, desesperadas para protegê-las. Mas as mães já haviam passado a mandar seus filhos para sessões de leitura com o Ogier. Os estrangeiros que circulavam entre os habitantes de Campo de Emond, em seus casacos e vestidos de cortes exóticos, destacavam-se quase tanto quanto Loial, mas ninguém lhes dispensava mais que uma olhadela, e o mesmo acontecia com os três Aiel da aldeia — sujeitos estranhos, longilíneos, todos vestidos em tons de marrom e cinza. Até duas semanas antes, ainda havia duas Aes Sedai por lá, que também já provocavam apenas mesuras e cumprimentos respeitosos. Mudanças. Os dois mastros erguidos não muito longe do rio Fonte de Vinho, no Campo, eram visíveis por sobre os telhados das casas, um ostentando a silhueta vermelha da cabeça de lobo que se tornara símbolo de Perrin, o outro, a águia carmesim símbolo de Manetheren, que desaparecera durante as Guerras dos Trollocs, cerca de dois mil anos antes, mas aquela terra fizera parte da nação, e Dois Rios hasteava sua bandeira quase por aclamação. Mudanças — e eles não faziam ideia de como eram grandes, de como eram inexoráveis. Mas Perrin os apoiaria, não importava o que viesse pela frente. Com a ajuda de Faile, ele os apoiaria.

— Eu e Gwil caçávamos coelhos juntos — comentou Perrin. — Ele é só alguns anos mais velho, e às vezes me levava para caçar.

Faile precisou de um momento para se lembrar do que ele estava falando.

— Gwil está tentando aprender a ser lacaio. Você não o ajuda muito quando fica chamando o rapaz para fumar cachimbo e conversar sobre cavalos nos estábulos. — Ela inspirou lenta e profundamente. A tarefa não seria fácil. — Você tem um dever com essas pessoas, Perrin. Por mais difícil que seja, você precisa cumprir seu dever.

— Eu sei — respondeu ele, baixinho. — Consigo senti-lo me puxando.

A voz dele estava tão estranha que Faile estendeu a mão e deu um puxão em sua barba curta, para que ele a encarasse. Os olhos dourados, estranhos e misteriosos como nunca, tinham um ar triste.

— Como assim? Você pode até ter uma certa afeição por Gwil, mas ele…

— É o Rand, Faile. Ele precisa de mim.

O nó em seu estômago, que ela andara tentando ignorar, se apertou ainda mais. Faile convencera a si mesma de que esse perigo fora embora com as Aes Sedai. Bobagem. Ela era casada com um ta’veren, um homem destinado a desviar as vidas dos que o rodeavam conforme o Padrão desejava, e crescera com dois outros ta’veren, um deles o próprio Dragão Renascido. Era uma parte de Perrin que Faile era obrigada a dividir. Não gostava de ter que dividir nem um fio de cabelo, mas aquilo não tinha jeito.

— E o que você vai fazer?

— Vou atrás dele. — Perrin desviou o olhar por um instante, e os olhos de Faile acompanharam os seus. Recostados à parede estavam um pesado martelo de ferreiro e um machado com uma lâmina afiada em formato de meia-lua, com um cabo de meia passada de comprimento. — Eu não estava… — Sua voz era quase um sussurro. — Não estava conseguindo encontrar uma forma de contar isso a você. Vou hoje à noite, quando todos estiverem dormindo. Acho que não tenho muito tempo, e a viagem pode ser longa. Mestre al’Thor e Mestre Cauthon vão ajudar você com os prefeitos, se for preciso. Eu já falei com eles. — Perrin tentou suavizar a voz, uma tentativa lamentável. — De qualquer modo, você não deve ter problemas com as Sabedorias. Engraçado… quando eu era garoto, as Sabedorias sempre pareciam tão assustadoras, mas na verdade são bem tranquilas, basta ser firme.

Faile comprimiu os lábios. Então ele tinha falado com Tam al’Thor e Abell Cauthon, mas não com ela? E com as Sabedorias! Só queria que ele trocasse de lugar com ela por um dia, para ver como as Sabedorias eram tranquilas.