Aquele jovem tolo se mostrava disposto a morrer lutando contra o usurpador mesmo depois de Morgase perceber que nenhuma Casa em Andor a apoiaria, e dia após dia, semana após semana desde que ela concluíra que sua única escolha era procurar ajuda no exterior, ele vinha ficando cada vez mais insolente e insubordinado. Poderia pedir a cabeça de Tallanvor a Ailron e recebê-la sem qualquer questionamento. No entanto, a ausência de questionamentos não significava ausência de pensamentos. Ela realmente era apenas uma suplicante ali e não podia se dar ao luxo de pedir um favor que não fosse absolutamente necessário. Além do mais, não estaria ali sem Tallanvor. Seria prisioneira — pior que prisioneira — de Lorde Gaebril. Eram os únicos motivos pelos quais a cabeça de Tallanvor continuaria em seu pescoço.
Seu exército guardava as portas ornamentadas de seus aposentos. Basel Gill era um homem de bochechas rosadas, vaidoso, que usava os cabelos grisalhos penteados para trás para disfarçar a careca parcial. Seu colete de couro, cerzido com discos de aço, apertava com dificuldade a barriga, e ele levava uma espada que permanecera intocada por vinte anos até prendê-la no cinto para seguir sua rainha. Lamgwin era durão e corpulento, mas seus olhos de pálpebras pesadas lhe conferiam um aspecto sonolento. Ele também portava uma espada, mas as cicatrizes em seu rosto e no nariz, quebrado mais de uma vez, eram sinal de que estava mais acostumado a usar os punhos, ou um porrete. Um estalajadeiro e um brigão de rua. Fora Tallanvor, esse era o único exército de que dispunha até então para resgatar Andor e seu trono das mãos de Gaebril.
Os homens se curvaram em mesuras desajeitadas, mas ela passou direto por entre os dois e bateu a porta na cara de Tallanvor.
— O mundo — declarou, em um rosnado — seria muito melhor sem os homens.
— E mais vazio, sem dúvida — completou a antiga ama de Morgase, na antessala, sentada em sua cadeira ao lado de uma janela coberta com cortinas de veludo. O coque grisalho de Lini se balançava de um lado a outro enquanto ela mantinha a cabeça inclinada por sobre o aro de bordado. Uma mulher muito magra, mas nem de longe tão frágil quanto aparentava. — Imagino que Ailron esteja igualmente pouco acessível hoje? Ou foi Tallanvor, minha criança? Você precisa aprender a não deixar os homens estragarem o seu humor. Essa irritação deixa seu rosto todo manchado.
Lini ainda não admitia que não era mais ama, apesar de já ter sido ama da filha de Morgase.
— Ailron foi fantástico — respondeu Morgase, com prudência. A terceira mulher no recinto fungou alto. Estivera ajoelhada, apanhando roupas de cama dobradas de dentro de um baú, e Morgase teve que fazer um esforço para não olhar feito para ela. Breane era… companheira de Lamgwin. A baixinha bronzeada de sol estava sempre atrás dele, mas era cairhiena e deixava bem claro que Morgase não era sua rainha. — Mais um ou dois dias — prosseguiu —, e acho que consigo que ele se comprometa. Hoje ele finalmente admitiu que preciso de soldados de fora para recuperar Caemlyn. Quando Gaebril for expulso de lá, os nobres virão outra vez a mim.
Esperava que sim: estava em Amadícia por ter se deixado cegar por Gaebril, por ter destratado até seus amigos mais antigos entre as Casas só para seguir ordens dele.
— “Um cavalo lento nem sempre chega ao fim da viagem” — citou Lini, ainda concentrada no bordado. Gostava muito de ditados antigos, e Morgase suspeitava de que ela inventasse alguns conforme a demanda.
— Este vai — insistiu. Tallanvor estava errado em relação a Ghealdan: segundo Ailron, a nação estava à beira da anarquia por conta do Profeta a respeito de quem todos os serviçais andavam cochichando, o sujeito que pregava o Renascimento do Dragão. — Gostaria de um pouco de ponche, Breane. — A mulher só a encarou, e ela acrescentou: — Por gentileza.
Ainda assim, o copo foi servido com uma cara emburrada.
A mistura de vinho e sucos de frutas estava gelada e refrescante naquele calor, e Morgase apreciou o toque do cálice de prata contra a própria testa. Ailron mandara trazer neve e gelo das Montanhas da Névoa, embora fosse necessário um fluxo quase incessante de carroções a fim de prover o suficiente para o palácio.
Lini também apanhou um cálice.
— Quanto a Tallanvor — começou, depois de um golinho.
— Deixe quieto, Lini! — vociferou Morgase.
— E daí que ele é mais novo? — começou Breane. Também servira ponche para si. Tamanha afronta! A função dela era de serviçal, fosse lá o que tivesse sido em Cairhien. — Se quer o homem, agarre-o de uma vez. Lamgwin diz que o sujeito está jurado a você, e já vi o jeito como ele a olha. — Ela soltou uma risada rouca. — Duvido que recuse. — Os cairhienos eram nojentos, mas pelo menos a maioria encobria os costumes libertinos apropriadamente.
Morgase estava prestes a expulsar a mulher do quarto quando ouviu uma batida na porta. Sem aguardar permissão, um homem de cabelos brancos, todo magro e musculoso, adentrou o recinto. Seu manto branco como a neve trazia o brasão de um sol dourado e flamejante no peitoral. Torcera para conseguir evitar os Mantos-brancos até selar um acordo sólido com Ailron. O vinho fresco de súbito congelou seus ossos. Onde estavam Tallanvor e os outros? Como tinham permitido que o homem adentrasse seus aposentos daquele jeito?
Com os olhos escuros cravados nela, o sujeito dispensou uma mesura ínfima. Tinha o rosto envelhecido e a pele repuxada, mas era fraco como um martelo sem dono.
— Morgase de Andor? — perguntou, com a voz firme e profunda. — Sou Pedron Niall. — Não era um Manto-branco qualquer, mas o Senhor Capitão Comandante dos Filhos da Luz em pessoa. — Não tema. Não vim para prender a senhora.
Morgase se aprumou.
— Me prender? Sob que acusação? Eu não sei canalizar.
Assim que as palavras saíram de sua boca, ela quase estalou a língua, de tão exasperada. Não deveria ter mencionado a canalização. O fato de ter se colocado na defensiva era prova de como estava nervosa. O que dissera era verdade, pelo menos em grande medida. Cinquenta tentativas de sentir a Fonte Verdadeira resultaram em apenas um sucesso, e precisara de mais vinte tentativas de se abrir a saidar até conseguir um único fiozinho. Uma irmã Marrom chamada Verin lhe dissera que havia pouquíssima necessidade de ela permanecer na Torre até aprender a manejar a habilidade ínfima com segurança. Mesmo assim, naturalmente, a Torre a fez ficar. Mas até aquela capacidade de canalizar diminuta era proibida em Amadícia, sujeita a pena de morte. O anel da Grande Serpente em sua mão, joia que tanto fascinara Ailron, agora reluzia de tão quente.
— Mas foi treinada na Torre — murmurou Niall. — Isso também é proibido. Porém, como eu disse, não vim para prendê-la, mas para ajudá-la. Dispense suas mulheres para podermos conversar. — Ele ficou à vontade, ocupando uma poltrona alta acolchoada e dobrando o manto no encosto. — Mas, antes que elas saiam, vou querer um pouco desse ponche. — Para desgosto de Morgase, Breane imediatamente levou um cálice ao homem, mantendo os olhos baixos e o rosto inexpressivo feito uma tábua.
Ela se esforçou para recobrar o controle.
— Elas ficam, Mestre Niall. — Não daria ao homem a satisfação de chamá-lo pelo título. A desfeita não parecia intimidá-lo. — O que aconteceu com os meus homens ali fora? Não vou deixar passar se estiverem feridos. E o que o faz pensar que eu preciso da sua ajuda?
— Seus homens não estão feridos — respondeu Niall, desdenhoso, ainda bebendo. — Acha que Ailron vai dar o que a senhora precisa? A senhora é uma bela mulher, Morgase, e Ailron aprecia as damas de cabelos da cor do sol. A cada dia, vai se aproximar mais desse acordo que a senhora busca, mas sem nunca fechá-lo, até a senhora concluir que, talvez, com… algum sacrifício, ele acabe cedendo. Mas isso não vai acontecer, não importa o que dê a ele. A turba desse suposto Profeta está devastando o norte de Amadícia. A oeste está Tarabon, com uma guerra civil de muitos lados, mercenários jurados ao tal Dragão Renascido e rumores de Aes Sedai e do próprio falso Dragão apavorando Ailron. Fornecer soldados à senhora? Se ele conseguisse dez homens para cada um que tem de prontidão agora, ou até para cada dois, venderia a própria alma. Mas eu posso enviar cinco mil Filhos montados a Caemlyn, com a senhora no comando. Basta pedir.