Dizer que Morgase estava atônita teria sido pouco. Ela foi até uma cadeira oposta ao sujeito, mantendo a imponência apropriada, e sentou-se antes que as pernas cedessem.
— Por que o senhor iria querer me ajudar a expulsar Gaebril? — inquiriu. O sujeito obviamente sabia de tudo, sem dúvida possuía espiões entre os serviçais de Ailron. — Nunca dei aos Mantos-brancos a liberdade que desejavam em Andor.
Dessa vez, Niall fez uma careta. Os Mantos-brancos não gostavam dessa alcunha.
— Gaebril? Seu amante está morto, Morgase. O falso Dragão Rand al’Thor somou Caemlyn às suas conquistas.
Lini emitiu um gemido fraco, como se tivesse se furado, mas o homem manteve os olhos em Morgase.
A rainha, por sua vez, precisou agarrar o braço da cadeira para não apertar a mão no estômago. Se a outra mão não tivesse apoiado o cálice no braço da cadeira, ela teria derrubado ponche no carpete. Gaebril, morto? O sujeito tirara vantagem dela, fizera dela sua amante, usurpara sua autoridade, oprimira a nação em seu nome e, por fim, nomeara a si mesmo Rei de Andor, que nunca tivera um rei. Como, depois de tudo isso, ela poderia lamentar por jamais poder sentir suas mãos outra vez? Era loucura. Se não soubesse que era impossível, pensaria que ele tinha dado um jeito de usar o Poder Único nela.
Mas al’Thor estava de posse de Caemlyn? Isso podia mudar tudo. Ela o encontrara uma vez, um jovem camponês assustado, vindo do oeste, tentando de tudo para dispensar o respeito adequado à sua rainha. Mas era um jovem portando a espada de um mestre, com a marca da garça. E Elaida o tratara com cautela.
— Por que o chama de falso Dragão, Niall? — Se o sujeito pretendia chamá-la pelo nome, poderia passar até mesmo sem a alcunha de “mestre” destinada aos camponeses. — A Pedra de Tear caiu, como afirmavam as Profecias do Dragão. Os próprios Grão-senhores de Tear o proclamaram Dragão Renascido.
Niall estampava um sorriso debochado.
— Em todos os lugares onde ele apareceu havia Aes Sedai. Elas canalizam para ele, pode apostar. O garoto é só uma marionete da Torre. Tenho amigos em muitos lugares — eram espiões, a bem da verdade —, e eles me informaram que há provas de que a Torre fez a mesma armação com Logain, o último falso Dragão. Talvez ele tenha ficado muito cheio de si, e as Aes Sedai tenham precisado dar um fim nele.
— Não há prova disso. — Morgase ficou satisfeita com a firmeza da própria voz. Ouvira os rumores sobre Logain a caminho de Amador. Mas eram só rumores.
O homem deu de ombros.
— Acredite no que quiser, mas eu prefiro a verdade a fantasias bobas. Será que o verdadeiro Dragão Renascido faria o que ele fez? Os Grão-senhores o proclamaram, não foi o que a senhora disse? Quantos ele enforcou antes de os outros se curvarem? Ele deixou os Aiel saquearem a Pedra e toda a Cairhien. Afirma que Cairhien deve ter um novo governante, nomeado por ele, mas o único poder de verdade por lá é ele mesmo. E, além do mais, diz que haverá um novo governante em Caemlyn. A senhora está morta, sabia disso? Acho que estão falando em Lady Dyelin. Ele se sentou no Trono do Leão e realizou audiências, mas imagino que o assento seja muito pequeno, por ser destinado a mulheres. Ele o ergueu como troféu de sua conquista no Grande Salão do seu Palácio Real e o substituiu por um trono próprio. Mas nem tudo foram flores para ele, claro. Algumas Casas andorianas acham que ele matou a senhora. Agora que a senhora está morta, começou a despertar compaixão. Só que ele controla tudo em Andor com punhos de ferro, com uma horda de Aiel e um exército de rufiões das Terras da Fronteira recrutados pela própria Torre. Mas, se a senhora está pensando que ele vai recebê-la de volta em Caemlyn e lhe devolver o trono…
Niall foi baixando a voz, mas a torrente de palavras atingira Morgase feito pedras. Dyelin só seria a próxima na sucessão se Elayne morresse sem ter filhos. Ah, Luz, Elayne! Será que ela ainda estava segura na Torre? Era estranho pensar na antipatia que nutrira pelas Aes Sedai — em grande parte por terem perdido Elayne durante um tempo — e que ela exigira o retorno da filha, sendo que ninguém exigia nada da Torre, porém agora esperava que estivessem mantendo sua filha na rédea curta. Lembrou-se de uma carta enviada por Elayne depois de retornar a Tar Valon. Teria havido outras? Muitos acontecimentos do período em que Gaebril a mantivera cativa eram vagos. Sem dúvida Elayne estava segura. Ela também deveria estar preocupada com Gawyn e Galad — sabia lá a Luz onde os dois estavam —, mas Elayne era sua herdeira. A paz em Andor dependia de uma sucessão tranquila.
Precisava pensar bem no assunto. Tudo fazia sentido, mas as mentiras bem engendradas sempre faziam sentido, e aquele homem era um mestre nessa arte. Precisava de fatos. Não era surpresa que Andor acreditasse em sua morte: tivera de sair do próprio reino às escondidas, para evitar Gaebril e os que poderiam entregá-la a ele ou fazê-la pagar pelas injustiças que ele cometera. Se disso restasse alguma compaixão, poderia aproveitá-la quando se reerguesse dos mortos. Fatos.
— Precisarei de tempo para pensar — declarou.
— Mas é claro. — Niall levantou-se devagar. A própria Morgase teria se levantado, para que ele não ficasse mais alto, mas não sabia se as pernas aguentariam. — Volto daqui a um ou dois dias. Enquanto isso, quero garantir sua segurança. Ailron está tão ocupado com os próprios problemas que não há como afirmar quem poderia entrar sorrateiro, talvez com más intenções. Tomei a liberdade de postar alguns dos Filhos de vigia aqui. Com o consentimento de Ailron.
Morgase sempre ouvira dizer que os Mantos-brancos eram o verdadeiro poder em Amadícia e tinha certeza de que acabara de comprovar isso.
Niall foi um tantinho mais formal na partida do que na chegada, fazendo uma mesura que serviria a um de seus iguais. De um jeito ou de outro, deixava entrever que ela não tinha escolha.
Morgase se levantou assim que o sujeito foi embora, mas Breane disparou em direção às portas ainda mais depressa. Porém, antes que as duas conseguissem dar três passos, uma das portas se abriu, e Tallanvor e os outros dois irromperam no aposento.
— Morgase — chamou ele, em um arquejo, tentando sorvê-la com os olhos. — Achei que…
— Achou? — indagou a rainha, com desdém. Era demais! Ele não aprendia. — É assim que você me protege? Um garoto faria melhor! Pensando bem, isso foi mesmo obra de um garoto.
Tallanvor sustentou aquele olhar abrasador por mais um instante, então deu meia-volta e saiu, abrindo caminho por Basel e Lamgwin.
O estalajadeiro permaneceu parado, apertando as mãos nervosamente.
— Eram pelo menos trinta, minha Rainha. Tallanvor teria lutado… Ele tentou gritar, avisar a senhora, mas deram nele com o cabo de uma espada. O mais velho disse que não pretendiam machucar a senhora, mas que queriam tratar unicamente com a senhora, e se fosse necessário nos matar… — Olhou para Lini, depois Breane, que estudava Lamgwin de cima a baixo em busca de ferimentos. O sujeito também parecia bastante preocupado com a esposa. — Minha Rainha, se eu imaginasse que seríamos de alguma serventia… eu sinto muito. Decepcionei a senhora.
— “O remédio que cura é sempre amargo” — murmurou Lini. — Ainda mais para uma criança com ataques de birra.
Pelo menos desta vez a mulher não usara um tom que todo o cômodo fosse capaz de ouvir. E estava certa. Morgase sabia bem disso. Menos em relação ao ataque, claro. Basel, de tão arrasado, já parecia a ponto de aceitar de bom grado a decapitação.