— O senhor não me decepcionou, Mestre Gill. Pode ser que um dia eu venha a pedir que o senhor morra por mim, mas só quando sua morte resultar em um bem maior. Niall só queria conversar. — Basel se aprumou no mesmo instante, mas Morgase sentiu o peso do olhar de Lini sobre si. Muito amargo. — O senhor peça a Tallanvor que venha aqui. Eu… quero me desculpar pelas palavras impetuosas.
— A melhor maneira de se desculpar com um homem — interveio Breane — é levá-lo para um canto isolado do jardim.
Morgase teve um estalo. Antes de se dar conta do que fazia, já tinha arremessado o cálice na mulher, espalhando ponche pelo carpete.
— Saia daqui! — ganiu. — Todos vocês, saiam! O senhor pode levar o meu pedido de desculpas a Tallanvor, Mestre Gill.
Breane limpou o ponche do vestido com toda a calma, depois andou devagar até Lamgwin e deu o braço a ele. Basel saiu quase tropeçando ao tentar conduzi-los para fora.
Para surpresa de Morgase, Lini também saiu. Não era de seu feitio, o mais provável era que a antiga ama ficasse e lhe passasse o velho sermão, como se Morgase ainda tivesse dez anos. Não sabia por que aguentava aquilo. No entanto, quase pediu que a mulher ficasse. Mas logo todos saíram, a porta foi fechada… e ela tinha questões mais importantes com que se preocupar do que os sentimentos feridos de Lini.
Andou em círculos pelo carpete, tentando pensar. Ailron exigiria concessões nos negócios — e talvez o “sacrifício” de Niall — pela ajuda. Estava disposta a fazer as concessões, mas temia que Niall estivesse certo em relação à quantidade de soldados que o outro dispensaria. De certa forma, seria mais fácil ceder às demandas do Senhor Capitão Comandante. O homem decerto pediria livre acesso a Andor a todos os Mantos-brancos. E autonomia para eliminar os Amigos das Trevas que encontrassem em cada desvão, para incitar motins contra mulheres desamparadas acusadas de serem Aes Sedai, para matar as verdadeiras Aes Sedai. Niall poderia até exigir uma lei contra a canalização, contra a ida de mulheres à Torre Branca.
Seria possível — ainda que difícil e sangrento — expulsar os Mantos-brancos quando eles já tivessem estabelecidos, mas havia mesmo a necessidade de abrir as portas para eles, para começo de conversa? Rand al’Thor era o Dragão Renascido, tinha certeza disso, independentemente do que Niall dissesse. Tinha quase certeza. Porém, pelo que sabia, governar nações não era parte das Profecias do Dragão. Dragão Renascido ou falso Dragão, ele não poderia ter posse de Andor. Mas como ela poderia saber?
Um tímido roçar na porta a trouxe de volta a si.
— Entre — declarou, com rispidez.
A porta se abriu lentamente, e entrou um jovem de sorriso largo, vestido em um uniforme vermelho e dourado e trazendo uma bandeja com uma jarra de prata cheia de ponche gelado, já com gotículas formadas pela umidade. Estava esperando Tallanvor. Lamgwin montava guarda sozinho no corredor, pelo que ela podia ver. Ou pelo menos descansava, recostado na parede feito um segurança de taverna. Ela gesticulou, indicando ao jovem onde deixar a bandeja.
Irritada — Tallanvor deveria ter vindo, ah se deveria! —, voltou a andar em círculos. Basel e Lamgwin podiam partir para a aldeia mais próxima em busca de boatos, mas seriam apenas boatos, e talvez plantados por Niall. O mesmo valia para os serviçais do palácio.
— Minha Rainha. Posso falar, minha Rainha?
Morgase se virou, estupefata. O sotaque era de Andor. O jovem estava ajoelhado, o sorriso largo oscilando entre a dúvida e a arrogância. Talvez tivesse sido belo, mas o nariz quebrado fora mal corrigido. Em Lamgwin o traço parecia rústico, ainda que grosseiro, já naquele camarada… parecia que o sujeito tinha tropeçado e caído de cara no chão.
— Quem é você? — inquiriu. — Como entrou aqui?
— Sou Paitr Conel, minha Rainha. Venho de Mercado de Sheran. Em Andor — acrescentou, como se ela pudesse não se dar conta disso.
Impaciente, Morgase fez um gesto para que o rapaz prosseguisse.
— Vim para Amador com meu tio, Jen — explicou o recém-chegado. Ele é mercador em Quatro Reis, e veio atrás de tinturas tarabonianas. Elas estão caras, com todos esses problemas em Tarabon, mas ele achou que pudesse encontrar um preço melhor… — Morgase estreitou os lábios, e o sujeito logo continuou: — Ouvimos falar da senhora, minha Rainha, que a senhora estava aqui no palácio. E tem essa lei aqui de Amadícia, e com a senhora tendo sido treinada na Torre Branca e tudo o mais… Pensamos que poderíamos ajudar… — O rapaz engoliu em seco e concluiu, com uma vozinha fraca: — Ajudar a senhora a fugir.
— E vocês estão preparados para me ajudar… a fugir?
Não era o melhor plano, mas ela poderia cavalgar rumo ao norte até Ghealdan. Tallanvor ficaria exultante. Não, não ficaria, e isso seria pior.
Paitr, porém, balançou a cabeça cheio de pesar.
— Tio Jen tinha um plano, mas agora há Mantos-brancos em todo o palácio. Eu não sabia o que fazer além de vir falar com a senhora, que foi o que ele mandou. Tio Jen vai pensar em outra coisa, minha Rainha. Ele é esperto.
— Eu tenho certeza disso — murmurou Morgase. Então a ideia de ir a Ghealdan voltou a esmaecer. — Há quanto tempo você saiu de Andor? Um mês? Dois? — O rapaz aquiesceu. — Então não sabe o que está acontecendo em Caemlyn. — Ela deu um suspiro.
O jovem lambeu os lábios.
— Eu… estamos hospedados em Amador, com um homem que tem pombos. Um mercador. Ele recebe mensagens de todos os cantos. De Caemlyn também. Mas só ouço más notícias, minha Rainha. Pode levar um dia ou dois, mas o tio vai achar outra saída. Só queria que a senhora soubesse que tem ajuda por perto.
Bem, as coisas seriam desse jeito, afinal. Uma disputa entre Pedron Niall e esse tal de Jen, tio de Paitr. Desejou não ter tanta certeza quanto em quem apostar.
— Enquanto isso, pode me contar quanto as coisas estão ruins em Caemlyn.
— Minha Rainha, eu fui mandado aqui apenas para informar a senhora a respeito da ajuda. Meu tio vai ficar brabo se eu ficar…
— Eu sou a sua Rainha, Paitr — retrucou Morgase, com firmeza —, e também do seu tio Jen. Ele não vai se incomodar se você responder às minhas perguntas. — Paitr parecia prestes a sair em disparada, mas ela se acomodou em uma cadeira e se preparou para esgravatar a verdade.
Pedron Niall sentia-se bastante satisfeito ao descer de sua montaria no pátio principal da Fortaleza da Luz e jogar as rédeas para um cavalariço. Morgase estava sob controle, e ele não precisara mentir nenhuma vez. Não gostava de mentir. Criara sua própria interpretação dos acontecimentos, mas tinha certeza de tudo. Rand al’Thor era um falso Dragão, um instrumento da Torre. O mundo estava cheio de idiotas incapazes de pensar. A Última Batalha não seria um duelo titânico entre o Tenebroso e um Dragão Renascido, um homem comum. O Criador abandonara a humanidade à própria sorte havia muito tempo. Não… quando Tarmon Gai’don chegasse, seria como nas Guerras dos Trollocs, mais de dois mil anos antes, quando hordas de Trollocs e outras Crias da Sombra emergiram da Grande Praga, arruinaram as Terras da Fronteira e quase afogaram toda a humanidade em um mar de sangue. Não pretendia deixar a humanidade enfrentar isso cindida e despreparada.
Uma onda de mesuras de Filhos vestidos em mantos brancos o acompanhou pelos corredores de paredes de pedra da Fortaleza ao longo de todo o trajeto até sua sala de audiências particular. Na antessala, Balwer, o secretário de rosto rígido, pôs-se de pé de um salto e começou a enumerar os papéis que aguardavam a assinatura do Senhor Capitão, mas Niall focou a atenção no homem alto que se levantava, sossegado, de uma das cadeiras encostadas na parede — tinha um cajado carmesim de pastor por trás do sol dourado no manto e três nós dourados de graduação abaixo do bordado.