Jaichim Carridin, Inquisidor da Mão da Luz, tinha o aspecto severo de sempre, porém com mais cabelos grisalhos nas têmporas do que da última vez que Niall o vira. Os olhos escuros e fundos guardavam um toque de preocupação, e não era de se admirar. As duas últimas missões que lhe foram outorgadas terminaram em desastres, o que era nada auspicioso para um homem com aspirações de tornar-se Grão-inquisidor, talvez até Senhor Capitão Comandante.
Niall largou o manto com Balwer e fez um gesto para que Carridin o acompanhasse até a sala de audiências propriamente dita, onde as paredes de madeira escura exibiam estandartes de batalha capturados de antigos inimigos como troféus, e o chão era adornado por um sol imenso feito com uma quantidade de ouro capaz de embasbacar a maioria dos homens. No mais, era um aposento simples e estoico, reflexo do próprio Niall. O Senhor Capitão Comandante sentou-se em uma cadeira de espaldar alto bem trabalhada, mas sem ornamentos. As duas compridas lareiras idênticas, uma em cada extremo do aposento, jaziam frias e limpas naquela época do ano em que deveriam abrigar fogueiras. Prova suficiente de que a Última Batalha estava próxima. Carridin dispensou uma mesura profunda e ajoelhou-se sobre o raio de sol, já gasto por tantos séculos de receber pés e joelhos.
— Você se perguntou por que mandei buscá-lo, Carridin?
Depois dos acontecimentos na Planície de Almoth e Falme, depois de Tanchico, não haveria como recriminar o homem se ele estivesse pensando que seria preso. Porém, se suspeitava da possibilidade, não deixava entrever na voz. Como de costume, não se absteve de mostrar que sabia mais do que qualquer um. Decerto mais do que deveria.
— As Aes Sedai em Altara, meu Senhor Capitão Comandante. A chance de eliminar metade das bruxas de Tar Valon, bem aqui em nossa porta.
Um exagero. Havia um terço delas em Salidar, se tanto, porém não mais do que isso.
— E por acaso se perguntou em voz alta, com seus amigos?
Niall duvidava de que Carridin tivesse algum amigo, mas havia uns sujeitos com quem ele bebia. Com quem se embebedava, nos últimos tempos. O homem era dotado de algumas habilidades, no entanto. Habilidades úteis.
— Não, meu Senhor Capitão Comandante. Eu não cairia em tamanha esparrela.
— Bom — respondeu Niall. — Porque você não vai chegar nem perto dessa Salidar, e nem qualquer outro Filho.
Não soube dizer se foi um lampejo de alívio que o rosto de Carridin estampou por uns instantes. Se foi, era um comportamento destoante: o homem jamais demonstrara falta de coragem. E alívio, sem dúvida, não era a reação mais adequada.
— Mas elas estão ali pedindo para ser atacadas. Essa é a prova de que os boatos são verdadeiros, de que a Torre está dividida. Conseguiremos destruir esse bando sem que as outras ergam a mão. A Torre vai se enfraquecer a ponto de sucumbir.
— Acha mesmo? — perguntou Niall, secamente. Entrelaçou os dedos diante do corpo e manteve o tom de voz suave. Os Questionadores… a Mão desprezava essa alcunha, mas até ele a empregava. Os Questionadores nunca viam o que não estivesse bem diante do próprio nariz. — Nem a Torre pode apoiar abertamente esse falso Dragão al’Thor. E se ele se rebelar, como Logain? Agora… um grupo de insurgentes? Elas sim podem apoiá-lo, e haja o que houver a Torre Branca não sujará as saias. — Tinha certeza de que era isso que estava acontecendo. Caso não fosse, havia meios de usar qualquer desunião real para enfraquecer mais a Torre. Ainda assim, acreditava estar certo. — Em todo caso, o que o mundo vê é o que importa. Não deixarei que vejam apenas uma luta entre os Filhos e a Torre. — Precisava que o mundo enxergasse a verdadeira face da Torre: um antro de Amigas das Trevas se metendo com forças que deveriam se manter intocadas pela humanidade, as responsáveis pela Ruptura do Mundo. — Esta é uma luta do mundo contra o falso Dragão al’Thor.
— Então, se não vou para Altara, meu Senhor Capitão Comandante, que ordens tem para mim?
Niall jogou a cabeça para trás com um suspiro. Sentia um cansaço súbito. Sentia todo o peso de sua idade, e ainda mais.
— Ah, Carridin, você vai para Altara.
Niall conhecia o nome e o rosto de Rand al’Thor desde pouco depois da suposta invasão marítima de Falme, uma conspiração das Aes Sedai que custara mil homens aos Filhos e espalhara o caos e os Devotos do Dragão por Tarabon e Arad Doman. Na época, ficara sabendo quem era al’Thor e acreditara poder usá-lo para forçar a união das nações. Depois de unidas, com o Falso Dragão sob sua liderança, teria sido possível eliminar al’Thor e preparar-se para as hordas de Trollocs. Enviara emissários a cada governante de cada terra para alertá-los do perigo. Mas al’Thor conseguia ser ainda mais ligeiro do que ele imaginara, ainda era difícil acreditar. A ideia era deixar o leão raivoso rugindo pelas ruas por tempo o bastante para assustar todos, mas o leão se agigantara e ficara mais veloz do que um raio.
No entanto, nem tudo estava perdido, precisava sempre se lembrar disso. Mais de mil anos antes, Guaire Amalasan se declarara Dragão Renascido, um falso Dragão capaz de canalizar. Amalasan conquistara mais terras do que al’Thor possuía no momento, até que um jovem rei de nome Artur Paendrag Tanreall enfrentou-o em uma batalha e deu início à escalada de seu próprio império. Niall não se considerava um novo Artur Asa-de-gavião, mas era o que o mundo dispunha. E, enquanto estivesse vivo, não desistiria.
Já iniciara o contra-ataque à crescente força de al’Thor. Além dos emissários aos governantes, enviara homens a Tarabon e Arad Doman. Poucos, mas com a missão de encontrar as pessoas certas e sussurrar em seus ouvidos que todos os seus problemas eram culpa dos Devotos do Dragão, os tolos e Amigos das Trevas que haviam declarado apoio a al’Thor. E da Torre Branca. Já chegavam bastantes rumores de Tarabon a respeito do envolvimento de Aes Sedai na briga, rumores que serviam de preparação para a verdade. Era hora de dar o próximo passo naquele novo plano, para indicar que lado escolher aos que se mantinham em cima do muro. Tempo. Tinha tão pouco tempo. Mesmo assim, era impossível não sorrir. Certos homens, já mortos, um dia haviam declarado: “Quando Niall abre um sorriso, está mirando sua jugular.”
— Altara e Murandy estão prestes a ser assolados por uma praga de Devotos do Dragão — disse a Carridin.
O aposento parecia o salão de estar de um palácio — teto abobadado em reboco trabalhado, carpetes com tramas delicadas no piso de azulejos brancos, painéis com entalhes elaborados nas paredes —, embora estivesse longe de ser um palácio. Na verdade, estava longe de qualquer lugar capaz de ser compreendido pela mente humana. O vestido de seda bronze de Mesaana farfalhava enquanto ela circundava uma mesa marchetada de lápis-lazúli, entretida na montagem de uma complexa torre de dominós de marfim, na qual cada nível era maior que o inferior. Orgulhava-se de realizar o feito unicamente com seus conhecimentos de tensão e alavancagem, sem usar um fio sequer de Poder. A torre já tinha nove andares.
A verdade era que, mais do que entretida, Mesaana estava evitando conversar com sua companhia. Semirhage costurava, sentada em uma cadeira de espaldar alto revestida em tapeçaria vermelha, os dedos compridos e magros trabalhando com destreza os pontos minúsculos do padrão intrincado de flores diminutas. Era sempre surpreendente lembrar que a outra mulher apreciava uma atividade tão… comum. O vestido preto criava um forte contraste com a cadeira. Nem Demandred tinha a ousadia de insinuar a Semirhage que ela só usava preto com tanta frequência porque Lanfear usava branco.
Pela milésima vez, Mesaana tentou analisar a razão do desconforto que sentia perto da outra. Conhecia as próprias forças e fraquezas, tanto em relação ao Poder Único quanto em outros aspectos. Igualava-se a Semirhage na maioria dos pontos, e, nos que não se igualava, tinha outras forças para contrapor às fraquezas da mulher de preto. Não era isso. Semirhage se deleitava com a crueldade, tinha prazer em causar sofrimento, mas decerto não era essa a questão. Mesaana sabia ser cruel quando necessário, além de não se importar com o que Semirhage fazia com os outros. Tinha de haver uma razão, mas não conseguia descobrir qual.