Shaidar Haran voltou a atenção ao corpo que se contorcia, preso por seu punho. O belo rosto começava a ficar roxo, mas os pés continuavam se sacudindo, sem forças.
— Você vai se adaptar. O corpo se curva à alma, mas a mente se curva ao corpo. Já está se adaptando. Daqui a pouco vai parecer que nunca esteve em outra carne. Ou pode se recusar… Então outro tomará o seu lugar, e você será entregue… aos meus irmãos. E ainda com o bloqueio. — Os lábios finos se contorceram outra vez. — Eles estão sentindo falta de um pouco de diversão aqui nas Terras da Fronteira.
— Ela não consegue falar — interveio Osan’gar. — Você vai matá-la! Não sabe quem somos? Ponha-a no chão, Meio-homem! Obedeça!
Aquela coisa tinha que ser obrigada a obedecer a um Escolhido. No entanto, o Myrddraal continuou impassível, analisando o rosto escurecido de Aran’gar por um longo instante antes de pousá-la de volta no chão e abrir o punho.
— Eu obedeço ao Grande Senhor. A ninguém mais. — Aran’gar ficou ali, cambaleante, tossindo e engolindo o ar. Se ele retirasse a mão, a mulher cairia. — Vai se submeter à vontade do Grande Senhor? — A voz rascante não fez uma exigência, apenas uma pergunta superficial.
— Eu… eu vou — conseguiu responder a mulher, rouca, e Shaidar Haran a soltou.
Aran’gar cambaleou, massageando a garganta, e Osan’gar fez menção de ajudá-la, mas antes que a tocasse ela o ameaçou com um olhar cortante e o punho cerrado. Ele recusou de mãos erguidas. Não precisava dessa inimizade. Mas era mesmo um belo corpo, além de uma piada maravilhosa. Sempre se orgulhara do próprio senso de humor, mas aquilo era muito superior.
— Vocês não se sentem gratos? — questionou o Myrddraal. — Estavam mortos, agora estão vivos. Pensem em Rahvin, cuja alma já não tem salvação, já não pertence ao tempo. Vocês têm mais uma chance de servir ao Grande Senhor e se absolver de seus erros.
Osan’gar se apressou em assegurar à criatura de que era grato, que não desejava nada além de servir e ganhar absolvição. Rahvin estava morto? O que acontecera? Não importava: um Escolhido a menos era uma chance a mais de conquistar o verdadeiro poder quando o Grande Senhor fosse libertado. Era desgastante se humilhar diante de um ser que ele próprio criara, exatamente como os Trollocs, mas se recordava muito bem da morte. E rastejaria até diante de um verme para evitá-la outra vez. Aran’gar respondeu com a mesma rapidez, pelo que ele pôde perceber, apesar da raiva no olhar. Decerto também se lembrava.
— Então está na hora de vocês partirem outra vez para o mundo a serviço do Grande Senhor — declarou Shaidar Haran. — Ninguém além de mim e do Grande Senhor sabe que vocês estão vivos. Se forem bem-sucedidos, viverão para sempre e ocuparão um lugar acima de todos os outros. Se falharem… Mas vocês não vão falhar, não é mesmo?
O Meio-homem sorriu. Era como ver a morte sorrindo.
CAPÍTULO 1
Leão na colina
A Roda do Tempo gira, e as Eras vêm e vão, deixando memórias que se transformam em lendas. As lendas se desvanecem em mitos, e até o mito já está há muito esquecido quando a Era que o viu nascer retorna. Em uma Era, chamada por alguns de a Terceira Era, uma Era ainda por vir, uma Era há muito passada, um vento se ergueu por entre as florestas de árvores secas das colinas de Cairhien. O vento não era o início. O girar da Roda do Tempo não tem inícios nem fins. Mas era um início.
O vento soprava na direção oeste, por aldeias e fazendas abandonadas, muitas reduzidas a amontoados de madeira carbonizada. A guerra devastara Cairhien, tanto a guerra contra os outros países quanto a civil, ambas trazendo invasão e caos, e, mesmo depois de terminado — se é que de fato terminara —, poucas pessoas tinham se aventurado a retornar a suas casas. O vento não trazia umidade, e o sol se esforçava para ressequir a pouca que restava no solo. Na fronteira entre a pequena cidade de Maerone com a grande Aringill, do outro lado do Rio Erinin, o vento adentrava Andor. As duas cidades pareciam fornos, e, ainda que em Aringill houvesse mais orações pedindo chuva — pois os refugiados de Cairhien se acotovelavam no interior das muralhas feito sardinhas em um barril —, até os soldados aglomerados nos arredores de Maerone ofereciam suas preces ao Criador, as palavras às vezes embriagadas, às vezes sôfregas. O inverno já deveria ter começado a despontar na relva, a primeira neve deveria ter caído havia muito tempo, e o povo suado temia a razão para o frio ainda não ter chegado, embora poucos ousassem dar voz a esse temor.
O vento soprava na direção oeste, remexendo as folhas ressecadas das árvores, fazendo ondear a superfície dos córregos minguados margeados pela lama dura e seca. Não havia destroços de incêndios em Andor, mas os aldeões encaravam o sol escaldante com apreensão, e os fazendeiros tentavam não olhar para os campos que, no outono, não haviam produzido colheita. O vento seguia para oeste, cruzando Caemlyn, onde dois estandartes tremulavam no alto do Palácio Real, no coração da Cidade Interna, erguida pelos Ogier. Um dos estandartes tinha o fundo vermelho como sangue e ostentava um disco dividido por uma linha sinuosa, metade de um branco reluzente, metade de um negro profundo. O outro, de um pano branco feito neve, tremulava contra o céu. A figura ostentada parecia cavalgar ao vento, uma estranha serpente de juba dourada e quatro pés, os olhos cor de sol e as escamas em tons de ouro e escarlate. Era difícil saber qual dos estandartes provocava mais temor. Às vezes, o mesmo seio que acalentava medo trazia esperança. Esperança de salvação e medo de destruição, ambos vindos da mesma fonte.
Muitos diziam que Caemlyn era a segunda cidade mais bela do mundo — e não só os andorianos, que costumavam colocá-la em primeiro lugar, à frente até da própria Tar Valon. Enormes torres redondas estendiam-se pela imensa muralha externa de pedras cinzentas rajadas de branco e prata, enquanto no interior erguiam-se torres ainda mais altas, seus domos brancos e dourados reluzindo ao sol impiedoso. A cidade se estendia colina acima, e, no centro, ficava a antiquíssima Cidade Interna, circundada por uma muralha própria, branca e reluzente, contendo seus próprios domos e pináculos — um mosaico de azulejos roxos, brancos, dourados e cintilantes que encaravam com arrogância a Cidade Nova, lá embaixo, com seus bem menos de dois mil anos.
Assim como a Cidade Interna era o coração de Caemlyn, e não apenas por ocupar o centro, o Palácio Real era o coração da Cidade Interna. Parecia saído de um conto de menestrel, com pináculos brancos como a neve, domos dourados e trabalhos de cantaria que lembravam rendas. Um coração que pulsava sob a sombra daqueles dois estandartes.
Despido até a cintura, equilibrando-se sem dificuldade nas pontas dos pés, Rand estava tão alheio ao fato de estar no pátio de azulejos brancos de um palácio quanto à presença de observadores entre as colunas à volta. O suor colava os cabelos à cabeça e escorria pelo peito. A ferida arredondada na lateral do corpo, ainda meio cicatrizada, doía demais, mas ele se recusava a reconhecer a dor. Havia duas figuras iguais às do estandarte branco acima entrelaçadas em seus antebraços, refletindo um brilho metálico vermelho e dourado. Dragões, como os Aiel chamavam, e outros já adotavam o nome. Rand tinha vaga ciência das marcas de garça nítidas em cada uma de suas palmas, mas só porque podia senti-las contra o longo cabo da espada de madeira que usava para praticar.
Ele era um com a espada, fluindo de postura em postura sem nem pensar, as botas roçando de leve os azulejos claros. Leão na Colina virou Arco da Lua, que virou Torre da Manhã. Sem pensar. Cinco homens suados e sem camisa o rodeavam, passando nervosamente de postura em postura, manejando as espadas de prática. Eram tudo o que Rand percebia. Com os rostos rígidos e confiantes, eram os melhores que encontrara até então. Os melhores desde que Lan partira. Sem pensar, como Lan lhe ensinara. Ele era um com a espada, um com os outros cinco homens.