Só as Donzelas relaxaram — Enaila e Somara não muito.
Os Aiel não ligavam para o “Dragão Renascido”. Para eles, Rand era o Car’a’carn, profetizado para uni-los e destruí-los. Eles não tiveram dificuldades para aceitar isso, embora também se preocupassem, e pareciam aceitar a canalização e todos os seus possíveis desdobramentos com a mesma tranquilidade. Os outros — os aguacentos, pensou, secamente — o chamavam de Dragão Renascido e nunca especulavam a respeito do que aquilo significava. Acreditavam que ele era a reencarnação de Lews Therin Telamon, o Dragão, o homem que selara o buraco da prisão do Tenebroso e dera fim à Guerra da Sombra, mais de três mil anos antes. Também dera fim à Era das Lendas, quando o último contra-ataque do Tenebroso maculara saidin, levando todos os homens que canalizavam à loucura, começando pelo próprio Lews Therin e seus Cem Companheiros. Chamavam Rand de Dragão Renascido sem jamais suspeitar que uma parte de Lews Therin Telamon pudesse estar dentro de sua cabeça, tão louco quanto no dia em que dera início ao Tempo da Loucura e à Ruptura do Mundo, tão louco quanto qualquer um dos Aes Sedai homens que modificaram a face do mundo até deixá-la irreconhecível. Aquilo acontecera aos poucos, mas quanto mais Rand aprendia a respeito do Poder, mais forte ficava em relação a saidin, e mais forte ficava a voz de Lews Therin — e mais difícil se tornava a luta para evitar ser dominado pelos pensamentos de um homem morto. Era um dos motivos por que ele gostava de praticar com a espada: a ausência de pensamentos era uma barreira que preservava sua identidade.
— Precisamos encontrar uma Aes Sedai — murmurou Bashere. — Se esses boatos forem verdade… que a Luz queime meus olhos, seria melhor se nunca tivéssemos deixado aquela ir embora.
Muita gente fugira de Caemlyn nos dias seguintes à ocupação de Rand e dos Aiel. O próprio Palácio ficara quase vazio da noite para o dia. Havia pessoas que Rand gostaria de ter encontrado, gente que o ajudara, mas todos tinham desaparecido. Alguns ainda fugiam. Uma das fugitivas desses primeiros dias fora uma jovem Aes Sedai — tão jovem que seu rosto ainda não tinha aquele aspecto de idade indefinida típico das Aes Sedai. Os homens de Bashere mandaram um aviso assim que encontraram a mulher em uma estalagem, mas, quando ela descobriu quem Rand era, saiu correndo aos berros. Literalmente. Rand nunca descobriu seu nome ou sua Ajah. Havia rumores de que outra Aes Sedai estava em algum lugar da cidade, mas havia centenas de rumores espalhados por Caemlyn, milhares, cada um mais improvável que o outro. Era bem improvável que qualquer um daqueles boatos fosse levar a uma Aes Sedai. As patrulhas Aiel tinham avistado várias passando direto por Caemlyn, todas claramente apressadas para chegarem a algum lugar, nenhuma com intenção de adentrar uma cidade ocupada pelo Dragão Renascido.
— Será que eu posso confiar em alguma Aes Sedai? — perguntou Rand. — Foi só uma dor de cabeça. Minha cabeça não é assim tão dura a ponto de nem doer depois de uma pancada.
Bashere bufou com tanta força que o farto bigode se remexeu.
— Por mais dura que seja a sua cabeça, cedo ou tarde você vai ter que confiar nas Aes Sedai. Sem elas, nunca vai obter o apoio de todas as nações sem ter que apelar para a conquista. O povo espera esse tipo de coisa. Por mais que ouçam falar das Profecias que você já cumpriu, muitos vão esperar que as Aes Sedai marquem você.
— De todo modo, eu não vou evitar o conflito. Você sabe bem disso — respondeu Rand. — Duvido que os Mantos-brancos me recebam de braços abertos em Amadícia, mesmo que Ailron concorde com a minha presença, e Sammael não vai abrir mão de Illian sem luta.
Sammael, Rahvin, Moghedien e… com esforço, expulsou o pensamento da mente. Não era fácil. Vinha sempre sem aviso, e nunca era fácil.
Um baque surdo o fez virar a cabeça. Arymilla estava caída no chão de pedras. Karind se ajoelhava para puxar as saias da mulher, cobrindo os tornozelos, e esfregar seus pulsos. Elegar cambaleava, como se fosse se juntar a Arymilla a qualquer momento, e Nasin e Elenia não pareciam muito melhor. A maioria dos outros parecia prestes a vomitar. Mencionar os Abandonados tinha esse efeito, ainda mais depois que Rand contara a eles que Lorde Gaebril na realidade era Rahvin. Não sabia ao certo em quanto aqueles nobres acreditavam, mas considerar a possibilidade já era suficiente para deixar quase todos tremendo. Só estavam vivos por se mostrarem tão chocados. Se Rand tivesse suspeitado de que eles sabiam a quem estavam servindo… não, pensou. Se eles soubessem, se fossem todos Amigos das Trevas, você mesmo assim os usaria. Às vezes, se achava tão repugnante que queria morrer de uma vez.
Ao menos estava dizendo a verdade. As Aes Sedai tentavam ao máximo manter segredo sobre os Abandonados estarem livres, temiam que a notícia só espalhasse mais caos e pânico. Rand tentava disseminar a verdade. O povo poderia até entrar em pânico, mas teria tempo de se recuperar. Do jeito que as Aes Sedai queriam conduzir as coisas, a informação e o pânico poderiam chegar tarde demais para serem remediados. Além do mais, o povo tinha o direito de saber o que estava enfrentando.
— Illian não vai aguentar por muito mais tempo — disse Bashere. Rand virou a cabeça depressa de volta para ele, mas o sujeito era experiente demais para falar sobre o que não devia onde não devia. Estava apenas desviando o assunto dos Abandonados. Ainda que Rand nunca tivesse visto qualquer assunto que deixasse o Marechal-General inquieto, nem mesmo os Abandonados. — Illian vai se espatifar feito uma noz golpeada por um martelo.
— Você e Mat bolaram um bom plano. — A ideia principal fora de Rand, mas Mat e Bashere haviam fornecido os mil detalhes que fariam o plano dar certo. Mat mais do que Bashere.
— Um rapaz interessante, esse Mat Cauthon — refletiu o homem. — Espero um dia poder conversar com ele outra vez. O jovem não chegou a dizer quem o tutelou. Agelmar Jagad? Ouvi dizer que vocês dois foram para Shienar. — Rand não disse uma palavra. Os segredos de Mat pertenciam ao próprio Mat, nem mesmo ele sabia muito bem quais eram. Bashere inclinou a cabeça e esfregou o bigode. — Ele é jovem para ter estudado sob a tutela de alguém. Não parece mais velho do que você. Será que encontrou uma biblioteca? Gostaria de ver os livros que ele leu.
— Vai ter que perguntar a ele — respondeu Rand. — Eu não sei. — Supunha que Mat devia ter lido algum livro, em algum momento, em algum lugar, mas o amigo nunca fora muito interessado em leituras.
Bashere apenas assentiu. Quando Rand não queria falar sobre algum assunto, Bashere em geral o deixava quieto. Mas nem sempre.
— Da próxima vez que for para Cairhien, por que não traz de volta a irmã Verde que ficou por lá? Egwene Sedai? Ouvi os Aiel falando dela, dizem que também é da sua aldeia. Você confia nela, não confia?
— Egwene tem outras obrigações. — Rand soltou uma risada. Irmã Verde. Ah, se Bashere soubesse.
Somara surgiu ao seu lado trazendo a camisa de linho e o casaco de uma bela lã vermelha cortada ao estilo andoriano, com dragões na gola comprida e grossas folhas de loureiro nas lapelas, subindo pelas mangas. Somara era alta até para uma Aiel, talvez nem uma mão mais baixa do que ele. Tal qual as outras Donzelas, ela baixara o véu, mas a shoufa marrom acinzentada ainda escondia quase todo o rosto.
— O Car’a’carn vai acabar pegando um resfriado — murmurou ela.
Rand duvidava muito. Os Aiel podiam não achar aquele calor muito fora do comum, mas o suor já escorria por seu corpo quase na mesma intensidade que durante o treino. Ainda assim, vestiu a camisa e enfiou-a por dentro da calça, deixando os laços desfeitos, depois se meteu no casaco. Não achava que Somara de fato fosse tentar vesti-lo à força, não na frente dos outros, mas assim evitaria o sermão dela e de Enaila — e muito provavelmente de algumas das outras —, bem como o chá de ervas.