Ele era o Car’a’carn para a maioria dos Aiel, e isso valia para as Donzelas. Em público. Quando estava sozinho com aquelas mulheres que haviam escolhido rejeitar o casamento e a família em favor da lança, as coisas ficavam mais complicadas. Supunha que — talvez — pudesse acabar com aquilo, mas tinha uma dívida com as Donzelas. Algumas já tinham morrido por ele, e outras morreriam — ele prometera, que a Luz o queimasse por isso! —, e, se podia permitir que se sacrificassem por ele, poderia permitir que fizessem qualquer outra coisa. Na mesma hora, o suor empapou a caminha e começou a deixar manchas escuras no casaco.
— Você precisa das Aes Sedai, al’Thor. — Rand torcia para que Bashere tivesse metade dessa tenacidade na batalha, o que era sua reputação. Mas só podia se basear naquela reputação e em algumas poucas semanas de contato. — Você não pode se dar ao luxo de tê-las como inimigas, e se elas não acharem que têm ao menos alguns cordéis atados a você, podem acabar debandando para o lado inimigo. Aes Sedai são traiçoeiras, homem nenhum tem como saber o que elas vão fazer ou deixar de fazer, nem por quê.
— E se eu lhe disser que existem centenas de Aes Sedai dispostas a me apoiar?
Rand estava ciente dos andorianos escutando a conversa. Precisava tomar cuidado para não falar demais. Não que soubesse muita coisa. O que sabia provavelmente era fruto de exagero e esperança. E duvidava bastante das “centenas”, a despeito das insinuações de Egwene.
Bashere estreitou os olhos.
— Se tivesse saído uma missão diplomática da Torre, eu saberia, então… — Ele baixou a voz quase a um sussurro. — A cisão? A Torre realmente se cindiu? — O Marechal-General parecia não conseguir acreditar nas palavras que saíam da própria boca. Todos sabiam que Siuan Sanche fora deposta e estancada. E executada, segundo os rumores. Ainda assim, para a maioria da população, a cisão da Torre era mera conjectura, e poucos acreditavam nisso. A Torre Branca permanecera intacta por três mil anos, um monólito se assomando sobre os tronos. Mas o saldaeano considerava todas as possibilidades. Ele prosseguiu em um sussurro de fato, aproximando-se para que os andorianos não entreouvissem: — Devem ser as rebeldes que estão dispostas a apoiar você. Talvez você conseguisse um acordo melhor com elas… Aquelas mulheres vão precisar de você tanto quanto você delas, talvez até mais. Mas rebeldes, mesmo sendo Aes Sedai, não chegam nem perto de ostentar o poder da Torre Branca, ao menos não com qualquer coroa. Os cidadãos comuns podem não ver a diferença, mas os reis e as rainhas vão saber.
— Mesmo assim são Aes Sedai — respondeu Rand, também baixinho —, não importa quem sejam. — E onde quer que estejam, pensou secamente. Aes Sedai… servas de todos… o Salão dos Servos está destruído… destruído para sempre… destruído… Ilyena, meu amor… Impiedoso, ele esmagou os pensamentos de Lews Therin. Às vezes eles até ajudavam, fornecendo informações necessárias, mas estavam ficando fortes demais. Se tivesse uma Aes Sedai por ali… uma Amarela, as que mais sabiam sobre Cura. Aí talvez ela… Ele encontrara uma Aes Sedai de confiança, embora só tivesse passado a confiar nela pouco antes de sua morte. Moiraine deixara um conselho em relação às Aes Sedai, em relação a qualquer mulher que usasse o xale e o anel. — Eu nunca vou confiar em nenhuma Aes Sedai — declarou, em um tom baixo e rouco. — Vou usá-las, porque preciso delas. Mas, rebeldes ou da Torre, sei que elas vão tentar me usar, porque é isso o que as Aes Sedai fazem. Nunca vou confiar nelas, Bashere.
O saldaeano assentiu, hesitante.
— Então use-as, se puder. Mas não se esqueça. Ninguém dura muito tempo seguindo o caminho das Aes Sedai. — Ele soltou uma risada curta de repente. — Até onde eu sei, Artur Asa-de-gavião foi o último. Que a Luz queime meus olhos, talvez você venha a ser o segundo.
O ruído de botas anunciou movimento no pátio: um dos homens de Bashere chegara, um sujeito jovem e corpulento, de nariz pronunciado, uma cabeça mais alto que seu general, ostentando uma barba negra brilhosa e um bigode espesso. Caminhava feito um homem mais habituado a uma sela do que aos próprios pés, mas manejou a espada na cintura com suavidade, ao se curvar em uma reverência. Para Bashere mais do que para Rand. Bashere podia até ser seguidor do Dragão Renascido, mas Tumad — Rand achava que era esse o nome do homem: Tumad Ahzkan — era seguidor de Bashere. Enaila e três outras Donzelas cravaram os olhos no saldaeano recém-chegado. Elas realmente não confiavam em nenhum aguacento perto do Car’a’carn.
— Um sujeito aí se apresentou aos portões — declarou Tumad, desconfortável. — Ele diz… É Mazrim Taim, milorde Bashere.
CAPÍTULO 2
A visita
Mazrim Taim. Ao longo dos séculos, antes de Rand, outros homens haviam alegado ser o Dragão Renascido. Nos últimos anos, houvera uma epidemia de falsos Dragões, alguns de fato capazes de canalizar. Um deles era Mazrim Taim, que reuniu um exército e destruiu Saldaea antes de ser capturado. A expressão de Bashere não se alterou, mas ele agarrou o cabo da espada com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos. Tumad o encarava, à espera de ordens. A fuga de Taim, a caminho de Tar Valon para ser amansado, era o principal motivo pelo qual Bashere fora até Andor. Era essa a extensão do medo e do ódio que Saldaea sentia por Mazrim Taim. A Rainha Tenobia mandara Bashere levar seu exército atrás do homem aonde quer que ele fosse, pelo tempo que fosse, para garantir que Taim jamais atormentasse Saldaea outra vez.
As Donzelas permaneceram paradas e serenas, mas aquele nome se espalhou entre os andorianos como uma tocha atirada na grama seca. Arymilla estava sendo ajudada a se levantar, mas revirou os olhos outra vez e teria desabado de novo se Karind não a tivesse amparado a meio caminho do chão de pedras. Elegar cambaleou para trás por entre as colunas e se curvou, vomitando audivelmente. O restante arquejava, em pânico, levando lenços à boca e agarrando os punhos das espadas. Até mesmo a impassível Karind umedecia os lábios, em um tique nervoso.
Rand tirou a mão do bolso do casaco.
— A anistia — lembrou, e os dois saldaeanos lhe lançaram um olhar longo e inexpressivo.
— E se ele não tiver vindo pela sua anistia? — perguntou Bashere, depois de um instante. — E se ele ainda alegar que é o Dragão Renascido?
Os andorianos se mexeram nervosamente. Ninguém queria estar a milhas de distância de onde o Poder Único poderia ser usado em um duelo.
— Se ele achar isso — respondeu Rand, com firmeza —, vou desiludi-lo.
Rand levava no bolso o tipo mais raro de angreal: um feito para homens. Era uma escultura de um homenzinho gordo portando uma espada. Por mais forte que Taim fosse, não tinha condições de enfrentar aquilo. — Mas, se ele tiver vindo pela anistia, eu a concedo, assim como a concedi aos outros. — Fosse lá o que Taim tivesse feito em Saldaea, Rand não poderia se dar ao luxo de rejeitar um homem capaz de canalizar, alguém que não tivesse a necessidade de ser instruído desde os primeiros passos. Precisava de um homem desses. E não rejeitaria ninguém que não fosse um Abandonado, a não ser que fosse forçado a isso. Demandred e Sammael, Semirhage e Mesaana, Asmodean e… Rand forçou Lews Therin a recuar. Não podia se dar ao luxo de se distrair.
Bashere fez outra pausa antes de falar, mas por fim assentiu e soltou a espada.
— A sua anistia persiste, é claro. Mas escute bem, al’Thor. Se Taim puser os pés em Saldaea outra vez, não vai sair vivo. Há lembranças demais. Não há ordem que eu possa dar, ou mesmo Tenobia em pessoa, que vá impedir isso.