Sulin saiu do dormitório com um travesseiro nos braços, franzindo o cenho para Faile e Perrin. Seu cheiro remetia a uma loba que aguentara quanto pudera enquanto um sem-número de lobinhos puxavam seu rabo em brincadeiras. Também cheirava a preocupação. E, estranhamente, a medo — bem, Perrin não sabia dizer por que era estranho encontrar uma serviçal de cabelos brancos cheirando a medo, por mais que fosse uma de cara curtida e cheia de cicatrizes como Sulin.
Ele pegou um livro de capa de couro trabalhada com douraduras, afundou em uma poltrona e abriu o exemplar. Só que não leu, nem sequer olhou para o livro direito para saber qual volume tinha em mãos. Inspirou profundamente, deixando tudo de fora, menos Faile. Decepção, raiva, ciúmes, e por baixo de tudo aquilo, ainda mais sutil que o suave aroma herbóreo de sabão, estava ela. Sorveu-a com sofreguidão. Uma palavra, era só o que ela precisava dizer.
Bateram à porta e Sulin saiu do quarto pisando duro, balançando as saias de tecido vermelho e branco e cravando os olhos em Perrin, Faile e Loial como se perguntasse por que nenhum deles atendera. Quando viu Dobraine ali, parado, Sulin chegou até a rosnar — coisa que vinha fazendo com bastante frequência desde o sumiço de Rand —, então respirou fundo, como se reunisse forças, e se obrigou a assumir uma postura servil. A mesura profunda poderia ter saudado um rei que fizesse as vezes de carrasco, e a mulher permaneceu naquela posição, com o rosto quase colado ao chão. De repente, começou a tremer. O cheiro de ira se dissolveu, e até a preocupação foi sobrepujada por um cheiro como milhares de estilhaços, todos finos como fios de cabelo e afiados feito a ponta de uma agulha. Perrin já farejara vergonha na Aiel, mas daquela vez ela parecia prestes a morrer daquilo. Sentiu o cheiro agridoce que as mulheres exalavam quando choravam de emoção.
Dobraine, naturalmente, sequer se virou para ela — seus olhos fundos analisaram Perrin, com o rosto sério e até meio sombrio por sob a testa raspada e empoada. Dobraine não cheirava nem de leve a bebida, e também não parecia ter dançado recentemente. Da única vez em que Perrin o vira, achou que o homem cheirava a cautela — não era medo, era mais como se ele atravessasse uma mata densa cheia de cobras venenosas. Aquele cheiro estava dez vezes mais forte.
— Que a graça o favoreça, Lorde Aybara — cumprimentou Dobraine, inclinando a cabeça. — Podemos conversar em particular?
Perrin deitou o livro no chão ao lado da poltrona e apontou para o assento à sua frente.
— Que a Luz brilhe sobre o senhor, Lorde Dobraine. — Se o homem queria ser formal, Perrin podia ser formal. Mas havia limites. — Seja lá o que o senhor queira dizer, minha esposa pode ouvir. Não guardo segredos dela. E Loial é meu amigo.
Sentia o olhar de Faile fixo nele, e o cheiro súbito dela quase o arrebatou. Por alguma razão, associava aquele cheiro ao amor que Faile sentia por ele, pois costumava surgir em seus momentos mais carinhosos ou quando ela o beijava com mais ardor. Pensou em pedir que Dobraine se retirasse, assim como a Loial e Sulin — se Faile estava exalando aquele odor, ele sem dúvida poderia dar um jeito de acertar as coisas —, mas o cairhieno logo foi se sentando.
— Um homem que tem uma esposa de confiança, Lorde Aybara, tem uma graça maior que a riqueza. — Ainda assim, Dobraine encarou Faile por um instante antes de prosseguir. — Hoje, Cairhien sofreu dois infortúnios. Esta manhã, Lorde Maringil foi encontrado morto em sua cama. Foi envenenado, ao que tudo indica. E, pouquíssimo tempo depois, o Grão-lorde Meilan foi vítima da facada de um salteador em plena rua. O que é algo muito incomum durante o Festival das Luzes.
— Por que está me contando isso? — perguntou Perrin, hesitante.
Dobraine espalmou as mãos.
— O senhor é amigo do Lorde Dragão, e ele não está aqui. — O homem hesitou e, quando prosseguiu, parecia forçar as palavras a saírem. — Ontem à noite, Colavaere jantou com convidados de algumas das Casas menores. Daganred, Chuliandred, Annallin, Osiellin, dentre outros. São Casas pequenas, porém numerosas. O assunto foi a aliança com a Casa Saighan e o apoio a Colavaere em sua reivindicação ao Trono do Sol. A mulher fez pouco esforço para manter a reunião em segredo. — Dobraine fez outra pausa, avaliando Perrin com o olhar. Fosse lá o que o sujeito tinha visto, parecia pensar que a situação exigia mais explicações. — Isso é muito estranho, porque tanto Maringil quanto Meilan almejavam o trono, e os dois teriam sufocado Colavaere com o próprio travesseiro se ficassem sabendo do acontecido.
Perrin enfim compreendeu a situação, embora ainda não entendesse por que o homem tinha feito tantos rodeios. Desejou que Faile se pronunciasse — a mulher tinha muito mais talento do que ele para aquele tipo de coisa. Podia vê-la com rabo de olho, a cabeça inclinada por cima do tabuleiro de pedras, observando-o de esguelha.
— Se acredita que Colavaere cometeu um crime, Lorde Dobraine, o senhor deveria ir… até Rhuarc.
Evitou dizer o nome de Berelain, mas mesmo assim o fio tênue do ciúme se intensificou de leve em Faile.
— O Aiel selvagem? — bufou Dobraine. — É melhor ir a Berelain, se tanto. Admito que aquela ali até sabe comandar uma cidade, mas ela acha que todos os dias são o Festival das Luzes. Colavaere vai mandar fatiar e cozinhar a mulher com pimentas. O senhor é amigo do Dragão Renascido. Colavaere… — Ele parou, depois de enfim perceber que Berelain entrara sem bater, trazendo nos braços algo comprido e delgado envolto em um cobertor.
Perrin tinha ouvido o clique da fechadura da porta, mas ao ver a mayenense ali, com metade dos seios expostos, a fúria quase varreu todos os seus outros pensamentos. A mulher fora até ali para continuar com aquele flerte, na frente de sua esposa? A ira o fez se levantar, e ele uniu as mãos espalmadas com um estrépito.
— Fora! Fora, mulher! Fora, agora! Saia, ou eu mesmo vou jogá-la para fora, e com tanta força que vai quicar no chão!
Berelain levou um susto tão grande logo no primeiro berro que deixou cair o que segurava e deu um passo atrás, arregalando os olhos, mas não se retirou. Quando Perrin terminou de gritar, percebeu que todos o encaravam. Dobraine parecia impassível, mas seu odor era de assombro. As orelhas de Loial estavam rígidas e eretas, o queixo batendo no peito. E Faile estava com um sorriso frio… Perrin não conseguia entender. Já estava esperando as ondas de ciúme, com Berelain bem ali, mas por que ela também tinha aquele cheiro tão forte de mágoa?
Foi quando Perrin viu o que Berelain deixara cair. O cobertor se abrira, revelando a espada de Rand e o cinto com a fivela do Dragão. Rand tinha deixado aquilo para trás? Perrin gostava de pensar antes de agir — caso se precipitasse, podia acabar magoando os outros sem intenção —, mas aquela espada caída no chão foi como o golpe de um raio. No trabalho da forja, era burrice e desleixo agir com pressa, mas, ali, Perrin sentiu os pelos da nuca se arrepiarem, e um rosnado ressoou fundo em sua garganta.
— Ele foi levado! — gritou Sulin, de repente, para surpresa de Perrin. Jogando a cabeça para trás e fechando os olhos com força, ela soltou um gemido para o teto, em um tom que fez Perrin estremecer. — As Aes Sedai levaram meu irmão-primeiro! — Seu rosto estava molhado de lágrimas.
— Acalme-se, minha boa mulher — retrucou Berelain, com firmeza. — Vá até o quarto ao lado e acalme-se. — Para Perrin e Dobraine, acrescentou: — Não podemos permitir que ela espalhe isso…