Claro que os cairhienos não eram nada simpáticos com os Aiel, sempre olhando de cara feia ou com desprezo escancarado. Mais de uma vez, Dobraine reclamou sobre eles estarem em número doze vezes maior — o lorde respeitava as habilidades de luta daquele povo do Deserto, mas apenas como alguém respeitaria o caráter perigoso de uma horda de leopardos raivosos. Os Aiel não olhavam de cara feia e nem com desprezo, apenas deixavam claro que os cairhienos não eram nem dignos de nota. Perrin não ficaria surpreso se visse um Aiel tentando passar por cima de um cairhieno só por se recusar a admitir que o sujeito existia. Rhuarc dizia que não haveria problemas entre os dois grupos, mas que isso dependia apenas dos Assassinos da Árvore. Dobraine dizia que não haveria problemas, mas que isso dependia apenas de os selvagens não se meterem em seu caminho. Perrin queria ter certeza de que os grupos não começariam a matar uns aos outros antes mesmo de chegarem às Aes Sedai que estavam com Rand.
Nutria certa esperança de que os mayenenses pudessem servir de ponte entre os dois grupos, mas algumas vezes se arrependia de pensar assim. Os homens com placas peitorais vermelhas se davam bem com os mais baixos, de armadura lisa — Mayene e Cairhien nunca tinham declarado guerra entre si —, e também se entendiam com os Aiel — fora a Guerra dos Aiel, os mayenenses nunca tinham enfrentado o povo do Deserto. Dobraine era bem amistoso com Nurelle, com frequência partilhando a refeição noturna, e Nurelle se habituara a ir fumar cachimbo com muitos dos Aiel, sobretudo Gaul. Era daí que vinha o arrependimento.
— Andei conversando com Gaul — comentou Nurelle, em um tom acanhado.
Era o quarto dia na estrada, e o sujeito se afastara do grupo de mayenenses para cavalgar ao lado de Perrin, na dianteira. Perrin escutava sem muita atenção — Fogo Selvagem permitira que um dos machos mais jovens da matilha fosse espreitar as Aes Sedai, depois que o grupo começara as movimentações da manhã, e o lobo não conseguira farejar Rand. Ao que parecia, todos os lobos conheciam o cheiro do Matador de Sombras. Ainda assim, apesar de toda a incerteza do que Nuvens da Manhã vira, apenas um dos carroções do grupo das Aes Sedai não parecia levar barris cobertos por lonas. Rand decerto estava dentro de algum carroção, muito mais confortável e protegido do sol — Perrin já estava pingando de suor.
— Ele estava me contando sobre a Batalha de Campo de Emond — prosseguiu Nurelle — e de sua campanha de Dois Rios. Lorde Aybara, eu ficaria muito honrado em ouvi-lo falar pessoalmente sobre suas batalhas.
Perrin de repente se empertigou na sela, encarando o garoto — não, não era um garoto, apesar das bochechas rosadas e da franqueza no rosto. Nurelle decerto tinha mais ou menos a sua idade. Mas o cheiro do homem, um cheiro vivaz e meio trêmulo… Perrin quase ganiu. Sentira aquele mesmo odor nos garotos de casa, mas ser idolatrado como herói por um homem de sua idade era quase mais do que ele podia tolerar.
Ainda assim, não teria se incomodado se aquilo tivesse sido o pior. Já esperava que os Aiel e os cairhienos não se dessem bem. Já esperava que um rapaz que nunca presenciara uma batalha fosse admirar alguém que já lutara contra Trollocs. O que esgotava seus nervos eram as coisas que ele não podia prever — o imprevisível podia agarrá-lo pelo pé quando menos se esperasse e quando você menos pudesse se dar ao luxo de se distrair.
Exceto por Gaul e Rhuarc, todos os Aiel usavam uma tira de tecido vermelho amarrado na testa, com o disco branco e preto logo acima das sobrancelhas. Perrin já vira aquela tira em Cairhien e em Caemlyn, mas, quando perguntou a Gaul e depois a Rhuarc se era aquilo que os marcava como os tais siswai’aman de quem o chefe de clã havia falado, ambos tentaram fingir que não sabiam do que se tratava, como se não conseguissem ver cinco mil homens com faixas vermelhas na testa. Perrin perguntou até ao sujeito que parecia abaixo de Rhuarc no comando — Urien, um Reyn Duas Torres que ele já conhecera muito tempo antes. Mas Urien também se fez de desentendido. Bem, Rhuarc tinha dito que só poderia levar siswai’aman, então era assim que Perrin os via, mesmo sem saber o que o nome significava.
O que de fato sabia era que poderia haver algum desentendimento entre os siswai’aman e as Donzelas. Perrin sempre farejava uma lufada de inveja quando alguns daqueles homens olhavam para as Donzelas. Já o odor de algumas das Donzelas olhando para os siswai’aman lembrava um lobo acocorado por sobre a carcaça de um cervo, sem querer que mais ninguém da matilha desse uma mordida, nem que morresse engasgado por engolir tudo de uma vez. Perrin nem conseguia começar a decifrar o motivo, mas o cheiro lá estava e era bem forte.
Aquilo talvez fosse importante algum outro dia. Havia assuntos mais relevantes no momento. Durante os primeiros dois dias depois de sair da cidade, Sulin e Nandera se adiantavam toda vez que Rhuarc dizia qualquer coisa em relação às Donzelas — e era sempre Sulin quem cedia, corando muito, mas ela sempre voltava a tentar tomar a dianteira na oportunidade seguinte. Na segunda noite, quando o grupo montou acampamento, as duas tentaram se matar com as próprias mãos.
Pelo menos, foi o que lhe pareceu. As duas se chutavam, socavam e se derrubavam no chão, e Perrin teve certeza de que alguém acabaria com um braço quebrado… até que a mulher em desvantagem conseguia se desvencilhar com um giro ou um golpe. Rhuarc o deteve quando ele tentou interferir, até parecendo um pouco surpreso por ele querer se meter. Um bom número de cairhienos e mayenenses se reuniu ao redor das duas para assistir e fazer apostas, mas nenhum Aiel sequer olhou para a luta, nem mesmo as Sábias.
Sulin enfim imobilizou Nandera de cara para baixo, um braço dobrado dolorosamente atrás do corpo, então agarrou-a pelos cabelos e bateu sua cabeça no chão até a mulher desabar, o corpo inerte. Sulin ficou um bom tempo olhando para baixo, encarando a mulher que acabara de vencer, então jogou uma Nandera inconsciente por cima dos ombros e saiu cambaleante.
Perrin concluiu que Sulin tomaria a frente das conversas a partir de então, mas não foi o caso. A mulher ainda estava sempre presente, mas era Nandera, cheia de hematomas, que respondia às perguntas de Rhuarc e seguia suas ordens, enquanto Sulin, igualmente machucada, permanecia em silêncio e acatava qualquer comando da outra sem nem hesitar. Perrin só coçava a cabeça e se perguntava se os olhos estavam mesmo certos: será que tinha se enganado a respeito de como a briga terminara?
As Sábias sempre avançavam em grupos, todos variando em tamanho e com as integrantes sempre mudando. Ao fim do primeiro dia, Perrin percebeu que toda a movimentação na verdade se centrava em torno de duas mulheres: Sorilea e Amys. Ao fim do segundo dia, teve certeza de que as duas instigavam dois pontos de vista bastante diferentes, e havia muitas carrancas e olhares atravessados. De vez em quando Perrin as ouvia mencionarem as Aes Sedai, pescando fragmentos sobre “costume” e “batalha”, mas nunca entendia bem. Amys começou a recuar menos nas discussões, corando bem menos. Às vezes Rhuarc exalava um fraco odor de ansiedade ao olhar para a esposa, mas aquele era o único indício de que estava ciente do que se passava. No terceiro acampamento montado fora da cidade, Perrin quase esperava que as duas Sábias fizessem uma reinterpretação da briga entre Sulin e Nandera.
Em vez disso, as duas apanharam um cantil e se afastaram um pouco, sentando-se sozinhas no chão e retirando os lenços da cabeça, soltando os longos cabelos. Ficou olhando as duas sob a escuridão, iluminadas apenas pelo fraco luar, mantendo distância suficiente para não bisbilhotar, nem que fosse por acidente, até a hora de se deitar. Mas as duas apenas beberam água e conversaram. Na manhã seguinte, as Sábias ainda pareciam divididas em dois grupos, mas, antes que a comprida fileira completasse três milhas de marcha, Perrin notou que tudo passara a se centrar em torno de Sorilea. De vez em quando ela e Amys se afastavam até um canto da estrada para conversar, mas não se viam mais olhares atravessados. Se as duas fossem lobos, Perrin diria que alguém desafiara o líder da matilha e fora derrotado, mas, pelos odores que exalavam, Sorilea agora aceitara Amys quase como igual — coisa que nada condizia com os lobos.