As orelhas de Loial se contorceram em desconforto, e Perrin agarrou o braço de Rand quando Taim foi embora.
— Eu vi o que eles fazem, Rand. É… — Apesar do rosto e do machado ensanguentados, ele soava enojado.
— O que você quer que eu faça? — perguntou Rand. — O que mais eu posso fazer?
A mão de Perrin o soltou, e o amigo suspirou.
— Não sei. Mas não sou obrigado a gostar disso.
— Grady, erga o Estandarte da Luz! — mandou Taim, com o Poder transformando sua voz num estrondo.
Usando fluxos de Ar, Jur Grady tirou o estandarte carmesim da mão de Dobraine, que ficou chocado, e ergueu-o até fazê-lo passar pelo topo vazado da redoma. O fogo rebentou em torno dele e relâmpagos piscaram conforme o vermelho brilhante se ergueu em meio à fumaça que se elevava dos carroções em chamas. Rand reconheceu vários homens de casaco preto, mas só conhecia os nomes de uns poucos além de Jur: Damer, Fedwin e Eben, Jahar e Torval. Desses, só Torval trazia o Dragão no colarinho.
— Asha’man, formem a linha de batalha! — disse Taim, a voz ampliada pelo Poder.
Homens de casaco preto correram para se posicionar entre a redoma e os demais, todos menos Jur e aqueles que vigiavam as Aes Sedai. Excetuando-se Nesune, que espiava tudo com atenção, o grupo da Torre afundara apaticamente de joelhos, sem nem olhar para os homens que as blindavam, e mesmo Nesune ainda parecia prestes a passar mal. O grupo de Salidar observava com frieza os Asha’man que as vigiavam, embora, aqui e ali, voltassem aqueles olhos gélidos para Rand. Alanna só tinha olhos para ele. Rand notou que sua pele formigava ligeiramente. Para ele estar sentindo, mesmo com toda aquela distância, todas as nove deviam estar abraçando saidar. Ele esperava que elas tivessem juízo suficiente para não canalizar. Os homens de expressão pétrea que as encaravam abraçavam saidin a ponto de quase explodir, e tinham uma aparência tão tensa quanto a dos Guardiões que corriam os dedos por suas espadas.
— Asha’man, levantem a barricada duas braças! — Ao comando de Taim, as extremidades da redoma se levantaram em toda a sua circunferência. Shaido surpresos, que vinham empurrando o que não conseguiam ver, deram um tropeção para a frente. Recuperaram-se de imediato, uma massa de véus negros em ofensiva, mas só tiveram tempo para um passo antes do grito seguinte de Taim: — Asha’man, matem!
A vanguarda dos Shaido explodiu. Não havia outra maneira de descrever a cena. Figuras de cadin’sor despedaçaram-se em jorros de sangue e carne. Fluxos de saidin penetraram por aquela bruma densa, disparando de Aiel em Aiel num piscar de olhos. A fileira seguinte de Shaido sucumbiu, depois outra e mais outra, como se eles estivessem correndo para dentro de um enorme moedor de carne. Observando a carnificina, Rand engoliu em seco. Perrin se curvou para esvaziar o estômago, o que Rand compreendeu perfeitamente. Outra fileira morta. Nandera cobriu os olhos com a mão e Sulin deu as costas para a cena. Os restos ensanguentados de seres humanos começaram a formar uma muralha.
Ninguém era capaz de fazer frente àquilo. Entre uma explosão de morte e a seguinte, os Shaido da frente de repente começaram a tentar ir no sentido contrário, forçando-se a recuar para o meio da massa que lutava para avançar. Esse próprio nó humano logo explodiu, e então todos começaram a recuar. Não, a correr. A chuva de fogo e relâmpagos que se abatia contra a redoma fraquejou.
— Asha’man — ecoou a voz de Taim —, anel de Terra e Fogo!
Sob os pés dos Shaido mais próximos aos carroções, o solo irrompeu de repente em fontes de chamas e terra, lançando homens em todas as direções. Enquanto os corpos ainda voavam pelo ar, mais bolhas de fogo jorraram do solo, depois mais, em um anel que se expandiu em torno dos carroções, perseguindo os Shaido por cinquenta passadas, cem, duzentas. Àquela altura, a única coisa que havia ali fora era pânico e morte. Lanças e broquéis foram abandonados. A redoma lá no alto agora estava transparente, exceto pela fumaça que subia dos carroções em chamas.
— Pare! — O estrondo das explosões engoliu o berro de Rand da mesma maneira como engolia com os gritos dos homens. Ele teceu os fluxos que Taim havia usado. — Já chega, Taim! — Sua voz crepitou como um trovão por sobre todo o local.
Mais um anel de erupções, então Taim ordenou:
— Asha’man, descansem!
Por um momento, um silêncio ensurdecedor pareceu preencher o ar. Os ouvidos de Rand zumbiam. Então ele conseguiu escutar gritos e gemidos. Feridos levantavam-se em meio às pilhas de mortos. E, mais à frente deles, Shaido corriam, deixando para trás grupos isolados de siswai’aman e Donzelas com panos vermelhos nos braços, cairhienos e mayenenses, alguns ainda em seus cavalos. Quase hesitantes, esses últimos começaram a se deslocar em direção aos carroções, alguns Aiel baixando os véus. Com o Poder aperfeiçoando a sua visão, ele conseguiu identificar Rhuarc, mancando, um dos braços inerte ao lado do corpo, mas de pé. E, bem além dele, um grupo grande de mulheres trajando saias escuras volumosas e blusas claras, com uma escolta de homens com casacos de Dois Rios carregando arcos compridos. Estavam longe demais para que ele pudesse discernir os rostos, mas, pelo modo como os homens de Dois Rios encaravam os Shaido que fugiam, estavam tão estupefatos quanto qualquer outra pessoa.
Uma enorme sensação de alívio brotou em Rand, ainda que não o bastante para sossegar a agitação distante em seu estômago. Min pressionava o rosto na camisa dele. Estava chorando. Ele passou uma das mãos pelo cabelo dela.
— Asha’man — Rand nunca ficara tão contente pelo Vazio apagar as emoções da sua voz —, vocês se saíram bem. Eu o saúdo, Taim. — Ele virou de costas para que não fosse obrigado a continuar olhando os efeitos da carnificina e mal escutou os brados de “Lorde Dragão!” e “Asha’man!” que os homens de casaco preto faziam retumbar.
Quando se virou, deu de cara com as Aes Sedai. Merana estava bem lá atrás, mas Alanna estava quase cara a cara com ele, ladeada por duas Aes Sedai que Rand não reconheceu.
— Você se saiu bem — disse uma das duas, uma mulher de rosto quadrado. Uma fazendeira, com rosto de idade indefinida e olhos que por pouco mantinham a serenidade, ignorando os Asha’man ao seu redor. Obviamente ignorando-os. — Sou Bera Harkin e esta é Kiruna Nachiman. Viemos para resgatá-lo… com o auxílio de Alanna. — Um óbvio adendo, e apenas por causa do súbito cenho franzido de Alanna. — Apesar de me parecer que você não precisa muito de nós. Ainda assim, as intenções continuam valendo, e…
— O lugar de vocês é com elas — afirmou Rand, apontando para as Aes Sedai blindadas. Vinte e três, ele contou, e Galina não estava entre elas. O zumbido de Lews Therin se avolumou, mas ele se recusou a dar ouvidos. Não era hora para rompantes insanos.
Cheia de orgulho, Kiruna se empertigou. O que quer que fosse, com certeza não era uma reles fazendeira.
— Você se esquece de quem somos. Elas podem até ter lhe tratado mal, mas nós…
— Não me esqueço de nada, Aes Sedai — cortou Rand com frieza. — Eu disse que poderiam vir seis, mas estou contando nove. Disse que vocês estariam em pé de igualdade com as emissárias da Torre, e, por terem desobedecido, vão estar mesmo. Elas estão de joelhos, Aes Sedai. Ajoelhem-se!
Rostos friamente serenos encaravam-no de volta. Rand sentiu os Asha’man preparando barreiras de Espírito. Um ar de desafio foi tomando o semblante de Kiruna, Bera e das outras. Duas dezenas de homens de casaco preto formaram um círculo em torno de Rand e das Aes Sedai.
Rand nunca vira Taim sorrir, mas o homem chegou bem perto.
— Ajoelhem-se e jurem fidelidade ao Lorde Dragão — ordenou ele em voz baixa — ou serão postas de joelhos. Podem escolher.