Bashere franziu o cenho, encarou o selo nas mãos de Rand e arquejou. Agora, entendia.
— Onde foi que você encontrou isso? — repetiu Rand. Se conseguisse encontrar o último… então o quê? Lews Therin se revolvia em sua mente, inquieto, mas ele se recusava a escutar.
— No último lugar onde você poderia imaginar — disse Taim —, que eu creio ser o primeiro lugar onde deveríamos procurar pelos outros. Uma fazendinha decadente em Saldaea. Parei para pegar água e o fazendeiro me entregou o disco. Era velho, sem filhos ou netos para herdar o objeto, e achou que eu fosse o Dragão Renascido. Contou que a família guardara o disco por mais de dois mil anos. Que foram reis e rainhas durante as Guerras dos Trollocs, nobres durante a época de Artur Asa-de-gavião. Talvez a história seja verdade. Seria tão improvável quanto encontrar esse disco em uma choupana a poucos dias de viagem até a Fronteira da Praga.
Rand assentiu, depois parou para recolher os trapos do embrulho. Estava acostumado a ver o improvável acontecer a seu redor, e por vezes também devia acontecer em outras terras. Reembrulhou o selo depressa e entregou-o a Bashere.
— Guarde isso com muito cuidado. — Quebre! Ele sufocou a voz. — Nada pode acontecer com este disco.
Bashere tomou o embrulho com as duas mãos, em um gesto reverente. Rand não soube ao certo se a mesura era para ele ou para o selo.
— Estará seguro durante dez horas ou dez meses, até que você o requeira.
Por um instante, Rand analisou o Marechal-General.
— Todos estão esperando eu enlouquecer, estão todos com medo, menos você. Agora há pouco, você deve ter pensado que eu finalmente tinha ficado louco, mas mesmo assim não teve medo de mim.
Bashere deu de ombros, abrindo um sorriso por trás do bigode grisalho.
— Quando dormi pela primeira vez em cima de uma sela, Muad Cheade era Marechal-General. O homem era louco feito uma lebre no início da primavera. Revistava o camareiro duas vezes por dia para ver se ele não estava escondendo veneno e só bebia vinagre e água, que alegava terem o efeito de neutralizar o veneno com o qual o sujeito o alimentava. Mas, durante todo o tempo em que convivi com ele, o vi comer tudo o que seu camareiro preparava. Uma vez, mandou derrubar um bosque de carvalhos porque as árvores estavam olhando feio para ele. Depois insistiu para que os troncos caídos tivessem funerais decentes, e ele próprio conduziu a oração. Você faz ideia do tempo que leva para cavar covas para vinte e três carvalhos?
— Por que ninguém fez nada? A família dele?
— Os que não eram tão loucos quanto ele, ou mais, tinham medo de olhá-lo com desconfiança. De todo modo, o pai de Tenobia não teria deixado ninguém encostar um dedo em Cheade. Ele podia ser louco, mas comandava melhor que qualquer um que já conheci. Nunca perdeu uma batalha. Sequer chegou perto disso.
Rand riu.
— Então você me segue porque acha que eu posso superar o Tenebroso nas táticas de batalha?
— Eu o sigo porque você é quem é — respondeu Bashere, baixinho. — O mundo precisa seguir você, ou os que sobreviverem vão desejar ter morrido.
Hesitante, Rand aquiesceu. As Profecias diziam que ele iria destruir nações e reuni-las. Não que ele desejasse fazer isso, mas as Profecias eram seu único guia para como lutar a Última Batalha, como vencê-la. E achava, mesmo sem elas, que unir as nações era necessário. A Última Batalha não seria travada apenas entre ele e o Tenebroso. Não podia acreditar nisso: por mais que pudesse estar enlouquecendo, ainda não chegara ao ponto de se julgar mais que um simples homem. Aquela também seria uma batalha da humanidade contra Trollocs e Myrddraal, contra todo tipo de Crias da Sombra que a Praga fosse capaz de regurgitar, e contra Amigos das Trevas emergindo de seus esconderijos. Haveria outros perigos na jornada até Tarmon Gai’don, e, se o mundo não estivesse unido… Você faz o que tem de ser feito. Não sabia dizer se a voz viera dele mesmo ou de Lews Therin, mas, até onde sabia, era verdade.
Avançou depressa até a coluna mais próxima, olhou para trás e disse para Bashere:
— Vou levar Taim para a fazenda. Quer vir junto?
— Fazenda? — perguntou Taim.
Bashere balançou a cabeça.
— Não, obrigado — respondeu, em um tom seco. O saldaeano podia não aparentar nervosismo, mas Rand e Taim juntos decerto era o máximo que ele era capaz de suportar. Ele claramente evitava a fazenda. — Meus homens estão ficando moles em policiar as ruas para você. Pretendo dar uma dura em uns deles, durante algumas horas. Você ia inspecioná-los hoje à tarde. Mudou de ideia?
— Que fazenda? — perguntou Taim.
Rand soltou um suspiro, se sentindo cansado de repente.
— Não, não mudei de ideia. Estarei na inspeção, se possível. — Aquilo era importante demais para mudar de ideia, embora ninguém além de Bashere e Mat soubessem. Não podia deixar que pensassem que era mais do que uma formalidade, uma cerimônia inútil para um homem cada vez mais tomado pela pompa de sua posição, o Dragão Renascido indo receber a saudação de seus soldados. Também tinha outra visita a fazer, naquele mesmo dia. Uma que todos pensariam estar sendo mantida em segredo. Poderia até continuar em segredo para a maioria, mas Rand não tinha dúvidas de que as pessoas que ele queria que soubessem, saberiam.
Apanhou a espada, apoiada em uma das colunas estreitas, e afivelou-a por cima do casaco aberto. O cinto era de couro de javali, escuro e sem adornos, bem como a bainha e o cabo comprido. A fivela era ornamentada com um dragão de aço e ouro muito bem trabalhado. Precisava se livrar daquela fivela, encontrar algo mais simples. Mas não podia fazer isso. Fora presente de Aviendha. E justamente por isso deveria se livrar daquilo. Não conseguia encontrar uma solução para aquele ciclo de pensamentos.
Algo mais o aguardava ali: uma lança de dois pés de comprimento, com borla verde e branca abaixo da ponta afiada. Ao virar-se de volta para o pátio, ergueu-a. Uma das Donzelas entalhara o cabo curto com Dragões. Alguns já chamavam aquilo de Cetro do Dragão, sobretudo Elenia e seu grupo. Rand mantinha o objeto por perto para se lembrar de que talvez tivesse mais inimigos do que conseguia enxergar.
— Que fazenda é essa que você está falando? — A voz de Taim ganhou firmeza. — Aonde é que pretende me levar?
Rand analisou o homem por um longo instante. Não gostava de Taim. Alguma coisa nos modos dele. Ou talvez algo em si próprio. Passara tempo ele sendo o único que conseguia sequer pensar em canalizar sem medo das Aes Sedai. Bem, não fazia muito tempo, e pelo menos as Aes Sedai não tentariam amansá-lo, não agora que sabiam quem ele era. Poderia ser simplesmente isso? Ciúme por não ser mais o único? Achava que não. Apesar de tudo o mais, acolheria quantos homens capazes de canalizar tranquilos que pudesse encontrar no mundo. Enfim deixaria de ser uma aberração. Não, não chegaria a tanto, não deste lado de Tarmon Gai’don. Ele era único, era o Dragão Renascido. Quaisquer que fossem os motivos, ele simplesmente não gostava do sujeito.
Mate esse homem! Ganiu Lews Therin. Mate todos eles! Rand abafou a voz. Não era obrigado a gostar de Taim, só precisava usá-lo. E confiar nele. O que era o mais difícil.
— Vou levá-lo a um lugar onde você pode me servir — respondeu com frieza.
Taim não se encolheu nem franziu o rosto, apenas observou e aguardou, os cantos da boca por um breve instante se contorcendo naquele meio sorriso.