Aquilo só precisava durar até Tarmon Gai’don — quanto tempo? Um ano? Dois? —, mas a questão era se duraria até lá. De alguma forma, duraria. Ele faria durar. As famílias eram, para os homens, uma lembrança de por que lutavam.
Os olhos de Sora estavam cravados em Rand.
— Vá, se quiser — respondeu a Jur. — Você pode ir embora a qualquer momento antes que comece a aprender a canalizar. Depois que der esse passo, terá se tornado o mesmo que um soldado. Você sabe que vamos precisar de todos os soldados que pudermos encontrar antes da Última Batalha, Jur. A Sombra vai arrebanhar novos Senhores do Medo prontos para canalizar, pode contar com isso. Mas a escolha é sua. Talvez você consiga ficar de fora lá na sua fazenda, até acabar. Deve haver alguns lugares no mundo que ficarão a salvo do que está por vir. Espero. De todo modo, o restante de nós vai fazer o possível para preservar o máximo de locais que der. Mas você podia ao menos dizer seu nome a Taim. Seria uma vergonha ir embora antes de descobrir se tem condições de aprender.
Evitando os olhos de Sora, Rand deu as costas para Jur, que parecia confuso. E você recrimina as Aes Sedai por manipular os outros, pensou com amargura. Fazia o que tinha de fazer.
Taim ainda ouvia os nomes do grupo, continuando a lançar olhares irritados mal contidos a Rand. De súbito, a paciência dele se esgotou.
— Já chega disso. Posso pegar os nomes depois, dos que ainda estiverem aqui amanhã. Quem é o primeiro a ser testado? — Na mesma rapidez, os homens congelaram a língua. Alguns o encaravam sem nem piscar os olhos. Taim apontou para Damer. — É melhor já tirar você do caminho. Venha cá.
Damer não se moveu até Taim o agarrar pelo braço e o puxar, afastando-o um pouco dos outros.
Observando, Rand também se aproximou.
— Quanto mais Poder for usado — ia explicando Taim, a Damer —, mais fácil detectar a ressonância. Por outro lado, uma ressonância grande demais pode lhe trazer um desconforto na cabeça, ou talvez até matá-lo, então vou começar de leve.
Damer piscou os olhos. Não entendera quase nada, exceto talvez a parte sobre desconforto e morte. Rand, porém, sabia que a explicação tinha sido para ele. Taim estava escondendo sua ignorância dos outros.
De súbito, uma pequenina chama tremulante irrompeu no ar. Tinha uma polegada de altura e estava equidistante dos três homens. Rand sentia o Poder em Taim, ainda que apenas um pouquinho, e via o fino fluxo de Fogo que o homem urdia. A chama trouxe um alívio surpreendente, era prova de que Taim podia mesmo canalizar. As dúvidas iniciais de Bashere deviam ter ficado em sua mente.
— Concentre-se na chama — disse Taim. — Você é a chama. O mundo é a chama. Não existe nada além da chama.
— Eu não sinto nada, só um princípio de dor nos olhos — resmungou Damer, enxugando o suor do rosto com o dorso da mão bruta e calejada.
— Concentre-se! — vociferou Taim. — Não fale, não pense, não se mexa. Concentre-se.
Damer aquiesceu, depois piscou os olhos para a carranca de Taim e congelou, encarando a chama diminuta em silêncio.
Taim estava concentrado, mas Rand não sabia ao certo em quê. Ele parecia escutar. Uma ressonância, ao que dissera. Rand manteve o foco, escutando, tentando sentir… alguma coisa.
Minutos se passaram sem que ninguém movesse um só músculo. Cinco, seis, sete minutos intermináveis, e Damer praticamente sem piscar. O velho respirava com dificuldade, suando tanto que parecia que tinham derramado um balde de água em sua cabeça. Dez minutos.
De repente, Rand sentiu. A ressonância. Uma coisa pequena, um eco do minúsculo fluxo de Poder que pulsava em Taim, mas parecia vir de Damer. Só podia ser a ressonância que Taim mencionara, mas ele não se mexeu. Talvez houvesse mais, ou talvez aquilo não fosse o que Rand imaginava.
Mais um ou dois minutos se passaram, e por fim Taim assentiu, liberando a chama e saidin.
— Você é capaz de aprender… Damer, não é? — Ele parecia surpreso. Sem dúvida não imaginara que o primeiríssimo homem passaria no teste, ainda mais um velho quase careca. Damer abriu um sorriso fraco, parecia prestes a vomitar. — Acho que eu não deveria me surpreender se todos esses simplórios passarem no teste — murmurou o homem de nariz de gavião, olhando para Rand. — Você parece ter a sorte de dez homens juntos.
Botas se remexeram, sem jeito, entre o restante dos “simplórios”. Sem dúvida alguns já desejavam não passar. Não podiam recuar agora, mas, se falhassem no teste, poderiam voltar para casa sabendo que tinham tentado, sem precisar encarar o que viesse caso passassem.
O próprio Rand ficou um pouco surpreso. Não houvera nada além daquele eco, no fim das contas, e ele sentira antes de Taim, que sabia o que procurava.
— No devido tempo, vamos descobrir qual é a extensão da sua força — explicou Taim, enquanto Damer retornava para perto dos outros. O grupo se afastou um pouco dele, sem encará-lo. — Talvez você tenha tanta força quanto eu ou até quanto o Lorde Dragão aqui. — O vão em torno de Damer se ampliou mais um pouco. — Só o tempo dirá. Preste atenção enquanto eu testo os outros. Se for esperto, vai conseguir pescar o jeito daqui a mais quatro ou cinco testes. — Uma rápida olhadela para Rand informou que o comentário tinha sido para ele. — Pois bem, quem é o próximo? — Ninguém se mexeu. O saldaeano alisou o queixo e apontou para um sujeito desajeitado com bem mais de trinta anos, um tecelão de cabelos escuros chamado Kely Huldin — Você. — Na fileira de mulheres, a esposa de Kely soltou um gemido de lamento.
Vinte e seis outros testes tomariam o restante da tarde, talvez até mais. Com ou sem calor, os dias estavam ficando cada vez mais curtos, como se o inverno de fato estivesse chegando, e um teste malsucedido levava alguns minutos a mais do que um bem-sucedido, só por garantia. Bashere estava aguardando, e ainda havia Weiramon para visitar, e…
— Continue aí — disse Rand a Taim. — Volto amanhã para ver como foram as coisas. Lembre-se da confiança que estou depositando em você. — Não confie nele, ganiu Lews Therin. A voz parecia vir de alguma figura cabriolante nas profundezas de sua mente. Não confie. Confiança leva à morte. Mate o homem. Mate todos eles. Ah, morrer e acabar, acabar com tudo, dormir sem sonhos, sonhos de Ilyena, me perdoe, Ilyena, não há perdão, apenas a morte, mereço morrer… Rand deu as costas para o grupo antes que seu rosto denunciasse a luta interna. — Amanhã. Se eu puder.
Taim o alcançou antes que ele e as Donzelas chegassem à metade do caminho de volta até as árvores.
— Se ficar mais um pouco, pode aprender a fazer o teste. — Havia um toque de exasperação em sua voz. — Isso se eu encontrar mais uns quatro ou cinco, de todo modo, o que não vai me surpreender. Você parece ter a sorte do próprio Tenebroso. Imagino que queira aprender. A não ser que esteja pretendendo largar tudo nas minhas costas. Estou lhe avisando, vai levar tempo. Por mais que eu pressione, esse Damer ainda vai levar dias, semanas, antes de sequer conseguir sentir saidin, que dirá tocá-lo. Só tocar, sem canalizar nem uma centelha.
— Eu já entendi como funciona o teste — respondeu Rand. — Não foi difícil. E de fato pretendo largar tudo nas suas costas, até você conseguir encontrar outros e ensinar a eles o suficiente para que possam ajudá-lo a procurar mais outros. Lembre-se do que eu disse, Taim. Seja rápido em ensinar a eles.
Havia perigos naquilo. Aprender a canalizar a metade feminina da Fonte Verdadeira era como aprender a aceitá-la, pelo que as mulheres tinham dito a Rand, aprender a submeter-se a algo que prestaria obediência a quem se entregasse. Era como guiar uma força colossal que só faria mal a quem abusasse de seu uso. Elayne e Egwene viam aquilo como natural. Para Rand, era quase impossível de acreditar. Canalizar a metade masculina era uma guerra constante por controle e sobrevivência. Se avançasse além da conta ou muito depressa, viraria um rapazinho atirado sem roupas em uma batalha intensa contra inimigos armados. Mesmo depois de aprender, era possível acabar destruído, morto ou com a mente obliterada por saidin — isso se simplesmente não acabasse exaurindo a própria habilidade de canalizar. O mesmo preço que as Aes Sedai cobravam de um homem capaz de canalizar que capturassem poderia ser cobrado do próprio canalizador em um instante de descuido, em um instante em que baixasse a guarda. Não que alguns daqueles homens diante do celeiro não estivessem dispostos a pagar esse preço naquele exato minuto. A esposa de Kely Huldin, com seu rosto redondo, agarrava o marido pela gola da camisa, falando com urgência. Kely balançava a cabeça, indeciso, e os outros homens casados encaravam suas esposas, preocupados. Mas estavam diante de uma guerra, e as guerras eram feitas de baixas, mesmo entre os casados. Luz, Rand estava ficando calejado a ponto de dar nojo a uma cabra. Virou um pouco o corpo para não ter que ver os olhos de Sora Grady.