— Só fique de olho. Discretamente.
— Como milorde Dragão desejar. — Taim chegou a fazer uma leve mesura antes de sair outra vez pela fazenda.
Rand percebeu que as Donzelas o encaravam. Enaila, Somara, Sulin, Jalani e todas as outras tinham o olhar cheio de preocupação. Elas aceitavam de pronto quase tudo o que ele fazia, até as coisas que ele hesitava em fazer e as decisões que deixavam os outros povos sobressaltados. Mas ficavam chocadas com coisas que ele nem compreendia. Elas aceitavam e se preocupavam com ele.
— Você não pode se cansar — murmurou Somara.
Rand a encarou e a mulher de cabelos louros enrubesceu. Aquele poderia até não ser considerado um lugar público, já que Taim estava longe demais para ouvir, mas mesmo assim aquilo estava passando dos limites.
Enaila, contudo, puxou uma shoufa reserva do cinto e entregou-a a ele.
— Não é bom para você pegar sol demais — murmurou a mulher.
— Ele precisa de uma esposa para vigiá-lo — resmungou uma das outras, Rand não soube dizer qual.
Nem mesmo Somara e Enaila diziam essas coisas na frente dele. E Rand sabia a quem se referiam: Aviendha. Quem melhor para se casar com o filho de uma Donzela do que uma Donzela que largara a lança para se tornar uma Sábia?
Suprimindo um lampejo de raiva, Rand enrolou a shoufa na cabeça e se sentiu grato. O sol estava mesmo escaldante e o tecido marrom-acinzentado bloqueava uma quantidade surpreendente de calor. O suor empapou o pedaço de pano na mesma hora. Seria possível que Taim conhecesse algum truque como o das Aes Sedai para não se deixar afetar pelo calor e pelo frio? Saldaea estava muito longe ao norte e, no entanto, tal qual os Aiel, o homem quase não transpirava. Apesar da gratidão, o que Rand disse foi:
— O que eu não posso é ficar aqui parado perdendo tempo.
— Perdendo tempo? — indagou a jovem Jalani, em um tom inocente demais, desamarrando a shoufa e expondo momentaneamente os cabelos curtos, quase tão ruivos quanto os de Enaila. — Como pode o Car’a’carn estar perdendo tempo? Da última vez que suei tanto quanto ele, tinha corrido do nascer ao cair do dia.
Sorrisos e gargalhadas irromperam entre as outras Donzelas. Maira, uma ruiva, pelo menos dez anos mais velha do que Rand, se acabava de rir, dando tapas na própria coxa, enquanto Desora, uma loura, tentava esconder o riso com a mão, como de costume. Liah, com sua cicatriz no rosto, pulava sem parar, enquanto Sulin quase se curvava de tanto rir. O humor Aiel era estranho, para dizer o mínimo. Os heróis das histórias não tinham sofrido chacotas, nem mesmo estranhas como aquela e Rand duvidava de que coisa parecida acontecesse com reis. Parte da questão era que um chefe Aiel, mesmo o Car’a’carn, não era um rei. Sob muitos aspectos, ele até podia ter a autoridade de um, mas qualquer Aiel podia ficar cara a cara com um chefe e dizer exatamente o que pensava. A maior parte da questão, no entanto, era outra.
Apesar de ter sido criado em Dois Rios, por Tam al’Thor e pela esposa de Tam, Kari, que morrera quando Rand tinha cinco anos, sua verdadeira mãe, fora uma Donzela da Lança que morrera dando à luz nas encostas do Monte do Dragão. Não uma Aiel, embora o pai tivesse sido, mas ainda assim uma Donzela. Dessa forma, Rand estava sujeito a costumes Aiel mais poderosos que a lei. Não havia como resistir. Nenhuma Donzela podia se casar e continuar portando a lança, e, a menos que abrisse mão da lança, qualquer criança que gestasse era entregue pelas Sábias a outra mulher, de modo que a Donzela jamais sabia que mulher era essa. Havia a crença de que o filho de uma Donzela trazia sorte, tanto ao nascer quanto a quem o criasse, embora ninguém além da nova mãe e seu marido soubessem que o filho não era dela. Mais ia além disso: a Profecia Aiel de Rhuidean dizia que o Car’a’carn seria gerado daquela forma, mas criado por aguacentos. Para as Donzelas, Rand representava o retorno de todas aquelas crianças: o primeiro filho de uma Donzela a ser conhecido por todos.
A maioria, fossem mais velhas que Sulin ou mais jovens que Jalani, o acolhia como a um irmão perdido por muitos anos. Em público, dispensavam-lhe o mesmo respeito que a qualquer chefe, por menor que parecesse. Sozinho com elas, no entanto, Rand acabava sendo tratado como irmão, ainda que a posição de irmão mais novo ou mais velho não tivesse nada a ver com a idade de cada mulher. Ele se contentava em ver que poucas seguiam o mesmo caminho de Enaila e Somara: em público ou não, era muito irritante ter uma mulher da idade dele se comportando como sua mãe.
— Então temos que ir para um lugar onde eu não vá suar — respondeu, conseguindo abrir um sorriso.
Devia isso a elas. Algumas já tinham morrido por ele e mais morreriam, antes que tudo terminasse. As Donzelas logo reprimiram as risadas, a postos para ir aonde o Car’a’carn mandasse, a postos para defendê-lo.
A questão era: para onde ir? Bashere aguardava sua visita calculadamente fortuita, mas se Aviendha tivesse ouvido a respeito, poderia muito bem estar com o Marechal-General. Rand andava evitando a mulher o máximo que podia, sobretudo se houvesse o risco de ficarem a sós. Porque queria ficar sozinho com ela. Até então, conseguira esconder isso das Donzelas. Se elas tivessem a menor suspeita que fosse, o atormentariam pelo resto da vida. O fato era que ele precisava manter distância dela. Rand levava a morte consigo, feito uma doença contagiosa. Era um alvo e as pessoas que o cercavam acabavam morrendo. Precisara endurecer o coração para permitir que as Donzelas morressem — que a Luz o queimasse para sempre por aquela promessa! —, mas Aviendha abrira mão da lança para estudar com as Sábias. Rand não sabia ao certo o que sentia por ela, só sabia que se Aviendha morresse por sua causa algo dentro dele morreria também. Era uma sorte que ela não tivesse qualquer envolvimento emocional com ele. Só tentava ficar por perto porque as Sábias queriam que ela o vigiasse e porque queria vigiá-lo para Elayne. Nenhum dos motivos facilitava a situação para ele — era exatamente o oposto.
Na verdade, não era difícil decidir. Bashere teria que esperar, só assim ele conseguiria evitar Aviendha. E a visita a Weiramon, planejada no Palácio para que parecesse uma tentativa de manter segredo, ocorreria primeiro. A vontade de fugir era um motivo tolo para tomar uma decisão, mas o que podia fazer um homem diante da insensatez de uma mulher? Inverter as obrigações poderia acabar sendo a melhor decisão. As pessoas que ele queria que descobrissem sobre o encontro secreto descobririam de qualquer forma — e talvez fosse justamente pela inversão que acabassem acreditando no que Rand queria que acreditassem, posto que tudo de fato seria feito às escondidas. Talvez a vistoria com Bashere e os homens de Saldaea parecesse ainda mais despropositada, já que ele deixaria para fazê-la no fim do dia. Isso. Manobras sobre manobras, um comportamento digno de qualquer cairhieno jogando o Jogo das Casas.
Agarrando saidin, Rand abriu um portão — a nesga de luz em pleno ar foi se alargando, revelando o interior de uma grande tenda com listras verdes, vazia exceto por um carpete colorido bordado com uma padronagem tairena em forma de labirinto. Não havia chance de sofrerem uma emboscada naquela tenda, menos ainda do que nos entornos da fazenda, mas Enaila, Maira e as outras se velaram e avançaram com pressa. Rand fez uma pausa e olhou para trás.