Os olhos de Bryne passaram por Elayne quase sem hesitar. Desde que chegara a Salidar, o homem se comportara de modo educado, sempre frio e distante, embora a conhecesse desde o berço. Até menos de um ano antes, fora Capitão-General da Guarda da Rainha em Andor. Elayne chegou a pensar que ele e sua mãe fossem se casar. Não, não pensaria na mãe! Min. Precisava encontrar Min para conversar.
No entanto, assim que se pôs a andar por entre a multidão pela rua de terra batida, duas Aes Sedai a encontraram. Não havia escolha a não ser parar e lhes dispensar uma mesura enquanto o povo passava ao redor. As duas abriram sorrisos enormes. Nenhuma suava uma gota que fosse. Puxando um lencinho da manga para enxugar o rosto, Elayne desejou já dominar um pouquinho desse conhecimento em especial das Aes Sedai.
— Bom dia, Anaiya Sedai, Janya Sedai.
— Bom dia, criança. Tem mais alguma descoberta para nós? — Como sempre, Janya Frende falava como se não tivesse tempo para pronunciar as palavras. — Você e Nynaeve têm feito um progresso impressionante, ainda mais para duas Aceitas. Não sei como Nynaeve consegue, tendo tanta dificuldade com o Poder, mas devo dizer que estou muito satisfeita.
Ao contrário da maioria das irmãs Marrons, geralmente absortas em seus livros e estudos, Janya Sedai era bastante asseada: cada fio de cabelo escuro parecia muito arrumado, emoldurando o rosto etéreo que marcava as Aes Sedai depois de muito tempo manejando o Poder. Contudo, a aparência da mulher esguia denunciava sua Ajah. Usava um vestido liso de lã cinza pesada — as Marrons quase nunca pensavam em roupas como algo além de uma cobertura decente para o corpo —, e, mesmo enquanto falava, parecia ter a testa levemente franzida, como se tivesse a mente tomada por qualquer outra coisa. Janya Sedai seria muito bonita sem a testa franzida. Ela continuou:
— Essa técnica de se enrolar na luz para ficar invisível… Extraordinário. Tenho certeza de que alguém vai encontrar um meio de impedir as ondas, para que seja possível caminhar e manter o efeito ao mesmo tempo. E Carenna está bastante animada com aquele truquezinho de bisbilhotice da Nynaeve. Muito safado da parte dela, porém útil. Carenna está pensando em um jeito de adaptá-lo para conversarmos à distância. Pense só. Falar com alguém a uma milha de distância! Ou duas, ou até…
Anaiya tocou o braço da mulher, e ela parou de falar, olhando sem reação para a outra Aes Sedai.
— Vocês estão progredindo muito, Elayne — comentou Anaiya, com a voz calma. A mulher de rosto largo estava sempre calma. A melhor palavra para descrevê-la era “maternal”, às vezes “reconfortante”, embora as feições de Aes Sedai tornassem impossível atribuir-lhe qualquer idade. Além disso, ela pertencia ao pequeno círculo de Sheriam que detinha o verdadeiro poder em Salidar. — Muito mais que qualquer uma de nós esperava, a bem da verdade, esperávamos muito. A primeira a fazer um ter’angreal desde a Ruptura. Isso é extraordinário, criança, e quero que você saiba disso. Deveria estar muito orgulhosa de si mesma.
Elayne encarou o chão diante de seus pés. Dois garotos da altura de sua cintura passaram às gargalhadas, entrecortando a multidão. Queria que não houvesse ninguém por perto para ouvir aquilo. Não que qualquer transeunte estivesse prestando atenção. Com tantas Aes Sedai na aldeia, as próprias noviças só dispensavam mesuras às que lhes dirigiam a palavra, e todas estavam sempre cheias de tarefas atrasadas.
Não se sentia nem um pouco orgulhosa, já que todas as “descobertas” provinham de Moghedien. Houvera muitas, a começar pela “inversão” — fazer com que uma tessitura só pudesse ser vista pela mulher que a urdira —, porém não haviam passado todas as novas informações adiante. Como o talento de esconder a habilidade de canalizar, por exemplo. Sem ele, Moghedien teria sido desmascarada em questão de horas — qualquer Aes Sedai a dois ou três passos de uma mulher era capaz de sentir se ela podia ou não canalizar. Se as outras aprendessem esse truque, poderiam aprender a transpô-lo. E isso também ajudava a criar disfarces: as tramas invertidas faziam com que “Marigan” não se parecesse nem um pouco com Moghedien.
Algumas coisas que a mulher sabia eram absolutamente repugnantes. A Compulsão, por exemplo, uma forma de forçar a vontade alheia e plantar instruções de modo que o receptor executasse ordens que sequer se lembrava de ter recebido. Havia coisas piores. Repugnantes demais, talvez perigosas demais para confiá-las a qualquer pessoa. Nynaeve dizia que precisavam aprendê-las para poder contra-atacá-las, mas Elayne não queria. Guardavam tantos segredos, mentiam tanto para os amigos e as pessoas próximas, que quase desejava poder fazer os Três Juramentos no Bastão dos Juramentos sem ter de esperar até ser elevada a Aes Sedai. Um deles a limitaria a não dizer palavra que não fosse verdadeira como se esse fosse o limite de seu próprio corpo.
— Não me saí tão bem quanto poderia com o ter’angreal, Anaiya Sedai.
Aquilo, pelo menos, era feito dela e de mais ninguém. Os primeiros haviam sido o bracelete e o colar. Um segredo bem guardado, desnecessário dizer, mas eram uma cópia levemente alterada de uma invenção sórdida — o a’dam — que os Seanchan haviam deixado para trás ao retornarem para o mar após a invasão de Falme. O disco verde liso que permitia que alguém sem força suficiente — ou seja, a maioria das Aes Sedai — conseguisse reproduzir o truque da invisibilidade fora ideia dela desde o início. Não possuía qualquer angreal ou sa’angreal para estudar, portanto fora impossível tentar construí-los até então — e, mesmo tendo facilidade em reproduzir o artefato Seanchan, os ter’angreal se mostraram mais complicados do que ela imaginara. Esses objetos usavam o Poder Único, em vez de intensificá-lo, para um propósito específico, para fazer algo. Alguns podiam até ser utilizados por quem fosse incapaz de canalizar, até mesmo por homens. Deveria ter sido mais simples. Talvez as funções fossem simples, mas a fabricação não era.
A afirmação modesta desencadeou uma torrente de Janya.
— Bobagem, criança. Pura bobagem. Ora, não tenho dúvidas de que assim que chegarmos de volta à Torre e pudermos testar você a contento e pôr o Bastão dos Juramentos em suas mãos, você será elevada ao xale, bem como ao anel. Não tenho dúvidas. Está mesmo atingindo o potencial que vimos em você. E mais. Ninguém poderia imaginar…
Anaiya tocou o braço dela outra vez. Parecia um código entre as duas, pois mais uma vez Janya parou e ficou sem palavras.
— Não há necessidade de encher tanto assim a cabeça dessa criança — comentou. — Elayne, não vou aturar essa sua mania de ficar amuada. Você já deveria ter passado dessa fase há muito tempo. — A mãe conseguia ser firme e gentil ao mesmo tempo. — Não vou admitir que você faça bico por conta de uns poucos fracassos, não com um sucesso tão incrível. — Elayne fizera cinco tentativas com o disco de pedra. Duas não tinham dado em nada, e outras duas deixavam a pessoa fora de foco e causavam embrulhos no estômago. A tentativa bem-sucedida fora a terceira. Mais do que poucos fracassos, na opinião de Elayne. — Tudo o que você fez é incrível. E Nynaeve também.
— Obrigada — respondeu Elayne. — Obrigada às duas. Vou tentar não ficar amuada. — Quando uma Aes Sedai acusava alguém de qualquer coisa, era melhor não tentar negar. — Podem me dar licença, por favor? Fiquei sabendo que a missão diplomática para Caemlyn está partindo hoje e quero me despedir de Min.
As duas a dispensaram, claro, embora Janya talvez tivesse levado meia hora para fazer isso se não estivesse acompanhada de Anaiya, que encarou Elayne com um olhar cortante — decerto sabia tudo sobre a conversa com Sheriam —, mas nada disse. Às vezes, o silêncio de uma Aes Sedai falava tão alto quanto suas palavras.