— Talvez — concordou Min, meio em dúvida. — Os homens são estranhos. É mais provável que, caso ele perceba que nós duas vamos sair correndo quando ele estalar os dedos, faça exatamente isso. Rand não vai conseguir se conter. Já vi homens fazendo isso. Acho que tem a ver com o cabelo que cresce no queixo deles. — A jovem tinha uma expressão tão pensativa que Elayne não soube dizer se era piada ou não. Min parecia saber muito sobre os homens. A jovem trabalhara basicamente em estábulos, pois gostava de cavalos, mas chegou a mencionar ter servido mesas em uma taverna. — De todo modo, não vou contar. Você e eu vamos dividi-lo feito uma torta. Talvez deixemos a terceira ficar com alguma migalha, quando ela aparecer.
— O que é que vamos fazer, Min?
Elayne não pretendia dizer aquilo, decerto não em tom quase de choramingo. Parte dela queria declarar que não tinha a menor dúvida de que ela nunca iria correndo quando ele estalasse o dedo e outra parte desejava que ele estalasse. Parte queria dizer que não dividiria Rand de forma alguma, com ninguém, nem mesmo com uma amiga, as visões de Min que fossem para o Poço da Perdição. Mas a outra parte desejava dar um cascudo em Rand por fazer isso com ela e Min. Era tudo tão infantil que sentia vontade de enterrar a cabeça, mas era incapaz de separar a raiva dos outros sentimentos. Acalmando a voz, respondeu à própria pergunta antes que Min o fizesse:
— O que vamos fazer é sentar aqui um pouco e conversar. — Dito e feito, escolheu um cantinho particularmente abundante de folhas mortas. Uma árvore formava um ótimo encosto. — Não só sobre Rand. Vou sentir a sua falta, Min. É tão bom ter uma amiga em quem posso confiar.
Min sentou-se de pernas cruzadas ao lado dela e começou, distraída, a catar seixos e atirá-los no córrego.
— Nynaeve é sua amiga. Você confia nela. E Birgitte sem dúvida parece uma amiga: você passa até mais tempo com ela do que com Nynaeve. — Um leve franzido enrugou sua testa. — Ela acredita mesmo que é a Birgitte das lendas? Quer dizer, todas as histórias mencionam o arco e a trança, ainda que o dela não seja de prata. E não acredito que ela tenha nascido com esse nome.
— Ela nasceu com o nome — respondeu Elayne, receosa. Era verdade, de certo modo. Era melhor mudar o rumo da conversa. — Nynaeve ainda não decidiu se sou uma amiga ou alguém que ela precisa intimidar para fazer o que ela considera correto. E passa mais tempo do que eu se lembrando de que sou filha da Rainha a quem ela serve. Às vezes acho que ela usa esse fato contra mim. Você nunca faz isso.
— Talvez eu não fique tão impressionada. — Min exibia um sorriso largo, mas soava séria. — Eu nasci nas Montanhas da Névoa, Elayne, nas minas. O poder da sua mãe é bem enfraquecido lá para as bandas do oeste. — O sorriso desapareceu de seu rosto. — Me desculpe.
Sufocando um lampejo de indignação — Min era tão súdita do Trono do Leão quanto Nynaeve! —, Elayne deixou a cabeça pender para trás e encostar na árvore.
— Vamos falar de coisas alegres.
O sol vertia por sobre os galhos das árvores acima delas; o céu era uma folha azul límpida, sem um traço sequer de nuvem no horizonte. Por impulso, ela se abriu para saidar e deixou-se preencher, como se todo o prazer da vida no mundo tivesse sido destilado e cada gota em suas veias tivesse sido substituída pela essência. Se conseguisse formar pelo menos uma nuvenzinha, seria um sinal de que tudo daria certo. A mãe estaria viva. Rand a amaria. E Moghedien… dariam um jeito nela. Arranjariam uma solução. Urdiu uma tênue teia de Ar e Água pelo céu, o mais distante que pôde, buscando umidade para uma nuvem. Se ao menos conseguisse puxá-la com força suficiente… a doçura logo se transformou quase em dor, o sinal de perigo — se recorresse a um tanto mais de Poder, poderia acabar estancando a si mesma. Só uma nuvenzinha.
— Coisas alegres? — indagou Min. — Bom, eu sei que você não quer falar sobre Rand, mas, além nós duas, ele ainda é a coisa mais importante no mundo, no momento. E a mais alegre. Os Abandonados caem mortos quando ele aparece, e as nações fazem fila para se curvar perante ele. As Aes Sedai aqui estão prontas para apoiá-lo. Sei que estão, Elayne: precisam estar. Ora, daqui a pouco Elaida vai pôr a Torre nas mãos dele. A Última Batalha será moleza. Ele está vencendo, Elayne. Nós estamos vencendo.
A Aceita largou a Fonte e tombou para trás, encarando o céu vazio como se tornara seu humor. Não era preciso saber canalizar para ver a mão do Tenebroso em ação, e, se ele podia tocar o mundo dessa forma, se podia sequer tocar o mundo…
— Estamos mesmo? — indagou, porém baixo demais para que Min ouvisse.
A casa do solar ainda não estava terminada, os compridos painéis de madeira do salão principal continuavam opacos e sem cor, mas Faile ni Bashere t’Aybara ouvia as petições dos súditos todas as tardes, como era apropriado à mulher de um lorde. Ficava sentada em uma robusta cadeira de espaldar alto com entalhes de falcões, bem diante de uma lareira de pedras nuas — havia uma lareira gêmea no outro extremo do aposento. A cadeira vazia a seu lado, com entalhes de lobos e uma grande cabeça de lobo no topo, deveria estar ocupada por seu marido, Perrin t’Bashere Aybara, Perrin Olhos-Dourados, Lorde de Dois Rios.
Naturalmente, o solar não passava de uma casa de fazenda grande demais, e o salão se estendia por pouco mais de quinze passadas. Ah, como Perrin a olhara feio quando ela insistira que fosse tão grande… Ele ainda pensava em si mesmo como ferreiro, ou até ajudante de ferreiro. Além disso, na ocasião de seu nascimento, a mulher recebera o nome de Zarine, não Faile. Essas coisas não importavam. Zarine, nome de mulher lânguida que suspirava trêmula ao ouvir poemas compostos em homenagem a seu sorriso. Faile, o nome que escolhera quando fora jurada Caçadora da Trombeta de Valere, significava falcão na Língua Antiga. Ninguém que olhasse com atenção para seu rosto — com nariz acentuado, maçãs do rosto proeminentes e olhos escuros e oblíquos que lampejavam quando ela estava com raiva — poderia duvidar de qual dos dois nomes lhe era mais apropriado. Quanto ao restante, o que importava era a intenção. E o que era correto e apropriado.
Naquele momento, seus olhos lampejavam. Não tinha nada a ver com a teimosia de Perrin, e apenas um pouco com o calor fora de estação. Mesmo que, em verdade, ter que abanar inutilmente o leque de penas de faisão para tentar secar o suor do rosto não melhorasse em nada seu humor.
Àquela hora já avançada da tarde, restava pouca gente da multidão que fora vê-la julgar as contendas. A verdade é que o povo ia para ser ouvido por Perrin, mas ele ficava apavorado só de pensar em julgar pessoas com quem crescera. A não ser que Faile o encurralasse, fugia feito lobo na neblina quando chegava a hora das audiências diárias. Por sorte, o povo não se incomodava quando Lady Faile os ouvia, em vez de Lorde Perrin. Ou então poucos se incomodavam, de todo modo, e eram sábios o bastante para disfarçar.
— Vocês trouxeram o assunto a mim — declarou, em um tom inexpressivo.
As duas mulheres suadas diante dela se remexiam, desconfortáveis, e encaravam o chão de pedras polidas.
Sharmad Zeffar, de pele acobreada, cobrira as curvas generosas, mas pouco as ocultava. Usava um vestido domanês de gola alta bastante transparente, com as mangas e bainhas de seda dourada bem claras e puídas, ainda com manchinhas da viagem que pareciam impossíveis de limpar. De qualquer forma, seda era seda, algo raro de se encontrar na região. Os patrulheiros que rondavam as Montanhas da Névoa em busca de vestígios da invasão dos Trollocs no último verão encontravam poucas das criaturas bestiais — e nenhum Myrddraal, pela graça da Luz —, mas resgatavam refugiados quase todos os dias: dez aqui, vinte ali, cinco acolá. A maioria vinha da Planície de Almoth, mas um bom número era de Tarabon e, como Sharmad, de Arad Doman — terras abandonadas, arruinadas pela anarquia, além da guerra civil. Faile não queria nem pensar em quantos haviam morrido naquelas montanhas. Com a falta de estradas ou mesmo de trilhas, a viagem não era fácil, nem em épocas melhores, e os dias atuais estavam longe de ser a melhor época.