Do momento em que o casal havia descoberto o cadáver até a partida do veículo, não se passaram mais de cinco minutos. O pai ainda está ali, atordoado, sem saber exatamente aonde ir, o que fazer. Ignorando de quem se trata, a mesma pessoa que fi zera o comentário sobre a droga vai até ele e repete sua versão dos fatos:
— Não se preocupe, senhor. Isso acontece todos os dias aqui.
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O pai não reage. Mantém o celular aberto nas mãos e olha o vazio. Ou não entende o comentário, ou não sabe o que acontece todos os dias, ou está em um estado de choque que lhe enviara rapidamente para uma dimensão desconhecida, em que a dor não existe.
Assim como surgira do nada, a multidão se dispersa. Fica apenas o homem com o celular aberto, e o homem com os óculos escuros nas mãos.
— O senhor conhecia a vítima? — pergunta Igor.
Não há resposta.
Melhor fazer o mesmo que os outros — continuar caminhando pela Croisette, e ver o que está acontecendo naquela manhã ensola-rada de Cannes. Assim como o pai, não sabe exatamente o que está sentindo: destruiu um mundo que não seria capaz de reconstruir, mesmo que tivesse todo o poder do mundo. Será que Ewa merecia isso? Do ventre daquela menina — Olivia, ele sabia seu nome, e isso o incomodava muito porque já não era mais apenas um rosto na multidão — poderia ter saído um gênio que iria descobrir a cura do câncer ou como costurar um acordo para que o mundo fi nalmente pudesse viver em paz. Acabara não apenas com uma pessoa, mas com todas as gerações futuras que poderiam nascer dali; o que tinha feito? Será que o amor, por maior e mais intenso que fosse, era capaz de justifi car isso?
Errou com a primeira vítima. Ela jamais será notícia, Ewa jamais entenderá o recado.
Não pense, já aconteceu. Você está preparado para ir mais longe, siga adiante. A menina vai entender que sua morte não foi inútil, mas um sacrifício em nome do amor maior. Olhe para os lados, veja o que está acontecendo na cidade, comporte-se como um cidadão normal — porque você já teve sua fatia de sofrimento nesta vida, e merece agora um pouco de conforto e tranqüilidade.
Aproveite o Festival. Você está preparado.
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Mesmo que estivesse com roupa de banho, seria difícil chegar até a beira do mar. Pelo visto, os hotéis tinham direito a grandes fatias de areia onde espalhavam suas cadeiras, seus logotipos, seus garçons, seus guarda-costas, que em cada acesso à área reservada pediam a chave do quarto ou algum tipo de identifi cação do hóspede.
Outras fatias da praia eram ocupadas por grandes toldos brancos, onde alguma produtora de fi lme, marca de cerveja ou produto de beleza estava lançando uma novidade no que chamavam de “almo-
ço”. Nesses lugares, as pessoas estavam vestidas de maneira normal, considerando-se como “maneira normal” um boné na cabeça, uma camisa colorida e calças claras para os homens; e jóias, vestidos leves, bermudas, sapatos de salto baixo para as mulheres.
Óculos escuros para ambos os sexos. E nada de muita exibição do físico, porque a Superclasse já passou da idade de fazer isso, qualquer demonstração pode ser considerada ridícula ou, melhor dizendo, patética.
Igor observa mais um detalhe: telefone celular. A peça mais importante em toda a indumentária.
Era importante receber mensagens ou chamadas a cada minuto, interromper qualquer conversa para atender uma ligação que realmente não tinha nenhuma urgência, fi car digitando textos gigantescos através dos chamados SMS. Todos haviam se esquecido de que estas iniciais queriam dizer serviço de mensagens rápidas ( short mes-sage service), e usavam o pequeno teclado como se fosse uma máquina de escrever. Era lento, desconfortável, capaz de provocar lesões sérias nos polegares, mas que importância tinha isso? Não apenas em Cannes, mas no mundo inteiro, naquele exato momento o espaço estava sendo inundado de coisas como “Bom dia, meu amor, acor-dei pensando em você e estou contente que exista em minha vida”,
“Chego em dez minutos, por favor prepare meu almoço e veja se a roupa foi enviada para a lavanderia”, “A festa aqui está chatíssima, mas não tenho outro lugar para ir, onde você está?”.
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Coisas que levavam cinco minutos para serem escritas, e apenas dez segundos para serem faladas, mas o mundo era assim mesmo.
Igor sabe bem do que se trata, porque ganhou centenas de milhões de dólares graças ao fato de que o telefone já não era apenas um meio de comunicar-se com os outros, mas um fi o de esperança, uma maneira de não achar que se está só, um jeito de mostrar a todos sua própria importância.
E este mecanismo estava levando o mundo a um estado de demência completa. Através de um engenhoso sistema criado em Londres por apenas 5 euros por mês, uma central envia mensagens-padrão a cada três minutos. Quando se está conversando com alguém que se deseja impressionar, basta antes ligar para determinado número e ativar o sistema. Neste caso, o alarme soa, o telefone sai do bolso, a mensagem é aberta, olha-se rapidamente, diz-se que tal mensagem pode esperar (claro que podia: estava escrito apenas “conforme pedido” e a hora). Assim, o interlocutor sente-se mais importante, e os negócios avançam com mais rapidez, porque sabe que está diante de uma pessoa ocupada. Três minutos depois a conversa é interrompida de novo por uma nova mensagem, a pressão aumenta, e o usuário pode decidir se vale a pena desligar o telefone por quinze minutos, ou alegar que estava ocupado e livrar-se de uma companhia desagradável.
Em uma única situação o telefone precisava ser obrigatoriamente desligado. Não nos jantares formais, no meio de uma peça de teatro, no momento mais importante de um fi lme, na ária mais difícil de uma ópera; todos já ouviram um celular tocando em qualquer um destes casos. A única hora em que as pessoas se assustavam realmente com a possibilidade de o telefone ser algo perigoso era quando entravam em um avião e ouviam a mentira de sempre: “Os celulares devem ser desligados durante todo o vôo, porque podem interferir nos instrumentos de bordo.”
Todos acreditavam e faziam o que os comissários pediam.
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Igor sabia quando este mito tinha sido criado: faz muitos anos que as companhias aéreas tentam vender de qualquer jeito as chamadas feitas através dos telefones na poltrona. Dez dólares por minuto, usando o mesmo sistema de transmissão que um celular usa.
Não tinha dado certo, mas mesmo assim a lenda continuou — esqueceram de apagar da lista que a aeromoça lê antes da decolagem.
O que ninguém sabia é que em todos os vôos havia pelo menos dois ou três passageiros que se esqueciam de desligar os seus. Que os computadores portáteis podiam acessar a internet com o mesmo sistema que permite um telefone móvel funcionar. Nunca, em lugar nenhum do mundo, um avião tinha caído por causa disso.
Agora estavam tentando modifi car parte da lenda sem chocar os passageiros, ao mesmo tempo em que mantinham o preço nas alturas: celulares poderiam ser usados desde que utilizassem o sistema de navegação do avião. O preço era quatro vezes maior. Ninguém explicou direito o que é “sistema de navegação do aparelho”. Mas se as pessoas querem se deixar enganar desta maneira, o problema é delas.
Continua andando. Algo no último olhar daquela menina o inco-modou, mas prefere não pensar no assunto.
Mais guarda-costas, mais óculos escuros, mais biquínis na areia, mais roupas claras e jóias nos almoços, mais pessoas caminhando apressadas como se tivessem alguma coisa muito importante para fazer naquela manhã, mais fotógrafos espalhados em cada esquina tentando a impossível tarefa de algo inédito, mais revistas e jornais gratuitos sobre o que está acontecendo durante o festival, mais distribuidores de folhetos dirigidos aos pobres mortais que não tinham sido convidados para as tendas brancas, sugerindo restaurantes que fi cavam no alto da colina, distante de tudo, onde pouco se ouvia falar do que acontecia na Croisette, onde as modelos alugavam apar-5 4