O produtor começa a bater nas portas dos estúdios. Já tem um certo nome, de modo que algumas delas se abrem, mas nem sempre sua sugestão é aceita. Neste caso, ele sequer se dá ao trabalho de chamar o escritor para um novo almoço — manda uma carta dizendo que, apesar do seu entusiasmo, a indústria do cinema ainda não entendeu aquele tipo de história, e que está devolvendo o contrato (que ele não assinou, claro).
Se a proposta é aceita, o produtor vai até a pessoa na escala mais baixa e menos cara da hierarquia: o roteirista. Aquele que irá passar dias, semanas, meses, escrevendo várias vezes a idéia original ou a adaptação do livro para a tela. Os roteiros são enviados ao produtor (jamais ao autor do livro), que tem por hábito recusar automati-camente o primeiro rascunho, na certeza de que o roteirista pode fazer melhor. Outras semanas e meses de café, insônia e sonho para o jovem talento (ou o velho profi ssional — aqui não existem meios-termos) que refaz cada uma das cenas, que são recusadas ou transformadas pelo produtor (e o roteirista se pergunta: “Se ele sabe escrever melhor que eu, por que não o faz?” Neste momento, pensa em seu salário, e volta para o computador sem reclamar muito).
6 9
Finalmente, o texto está quase pronto: nesta hora, o produtor pede para que sejam retiradas referências políticas que podem criar problema com um público mais conservador; que sejam acrescen-tados mais beijos, porque as mulheres gostam disso. Que a história tenha começo, meio, fi m, e um herói que leva todos às lágrimas com seu sacrifício e sua dedicação. Que alguém perca a pessoa adorada no começo do fi lme, e reencontre no fi nal. No fundo, a grande maioria dos roteiros pode ser resumida em uma simples linha: Homem ama mulher. Homem perde mulher. Homem recupera mulher.
Noventa por cento dos fi lmes são variações desta mesma linha.
Os fi lmes que fogem a esta regra precisam ter muita violência para compensar, ou muitos efeitos especiais para agradar à platéia. E
a fórmula, já testada milhares de vezes, é sempre vencedora; portanto é melhor não correr riscos.
Munido de uma história que considera bem escrita, o produtor vai em busca de quem?
Do estúdio que fi nanciou o projeto. Mas o estúdio tem uma fi la de fi lmes para colocar nas cada vez mais escassas salas de cinema do mundo. Pede que aguarde um pouco, ou que procure um distribuidor independente — não sem antes fazer com que o produtor assine outro gigantesco contrato (que inclusive prevê direitos exclusivos para
“fora do planeta Terra”) se responsabilizando pelo dinheiro gasto.
“E é exatamente neste momento que entra em cena gente como eu.” O distribuidor independente, que pode andar na rua sem ser reconhecido, embora nas festas da indústria todos saibam quem é. A pessoa que não descobriu o tema, não acompanhou o roteiro, não investiu um centavo.
Javits é o intermediário. É o distribuidor!
Recebe o produtor em seu pequeno escritório (o fato de ter um avião grande, casa com piscina, convites para tudo que está aconte-7 0
cendo no mundo é exclusivamente para seu conforto — o produtor não merece nem mesmo água mineral). Pega o DVD com o fi lme, leva para casa. Assiste aos primeiros cinco minutos. Se gostar, vai até o fi nal — mas isso acontece uma vez a cada cem novos produtos apresentados. Neste caso, gasta 10 centavos em uma chamada telefônica, e diz que o produtor volte a se apresentar em tal data, em tal hora.
“Assinamos um compromisso”, diz ele, como se estivesse fazendo um grande favor. “Eu distribuo.”
O produtor tenta negociar. Quer saber em quantas salas de cinema, em quantos países, quais as condições. Perguntas absolutamente inúteis, porque já sabe o que vai escutar: “Depende das primeiras rea-
ções do público-teste.” O produto é mostrado para platéias selecionadas entre todas as camadas da sociedade, gente que foi escolhida a dedo por companhias de pesquisa especializadas. O resultado é analisado por profi ssionais. Se é positivo, outros 10 centavos são gastos em uma chamada telefônica, e no dia seguinte, Javits o recebe com três cópias de mais um contrato gigantesco. O produtor pede tempo para que seu advogado leia. Javits diz que não tem nada contra isso, mas como precisa fechar o programa da temporada, não pode garantir que, na volta, já não esteja com outro fi lme no circuito.
O produtor olha apenas a cláusula que diz quanto vai ganhar.
Fica satisfeito com o que vê, e assina. Não deseja perder aquela oportunidade.
Já se passaram muitos anos desde que se sentou com o escritor para discutir o assunto, e se esqueceu que agora está vivendo a mesma situação que ele.
Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, e não há nada de novo debaixo do sol, já dizia Salomão há mais de três mil anos.
Enquanto vê o salão enchendo de convidados, Javits de novo se pergunta o que estava fazendo ali. Controla mais de 500 salas de cinema nos Estados Unidos, tem contrato de exclusividade com outras 7 1
cinco mil no resto do mundo, onde os exibidores estavam obrigados a comprar tudo que ele oferecesse, mesmo que às vezes não desse resultado. Sabiam que um simples fi lme de boa bilheteria pode compensar com vantagem outros cinco que não tiveram público su-fi ciente. Dependiam de Javits, o megadistribuidor independente, o herói que conseguira quebrar o monopólio dos grandes estúdios, e transformar-se em uma lenda no meio.
Jamais tinham perguntado como conseguira essa façanha; desde que continuasse lhes oferecendo um grande sucesso a cada cinco fracassos (a média dos grandes estúdios era um grande sucesso para cada nove fracassos), esta pergunta não tinha a menor importância.
Mas Javits sabia por que conseguira ser tão bem-sucedido. E por isso não saía jamais sem seus dois “amigos”, que naquele momento se encarregavam de responder chamadas, marcar encontros, aceitar convites. Embora os dois tivessem um físico razoavelmente normal, longe da corpulência dos gorilas que estavam na porta, valiam por um exército. Tinham sido treinados em Israel, servido em Uganda, Argentina, e Panamá. Enquanto um se concentrava no celular, o outro movia incessantemente os olhos — decorando cada pessoa, cada movimento, cada gesto. Revezavam-se na tarefa, da mesma maneira que os tradutores simultâneos e os controladores aéreos fazem; a habilidade requer descanso a cada quinze minutos.
O que está fazendo naquele “almoço”? Podia ter fi cado no hotel tentando dormir, já está cansado de ser bajulado, elogiado, e ter de dizer a cada minuto, sorridente, que não lhe dessem um cartão de visita porque iria perdê-lo. Quando insistiam, pedia gentilmente que falassem com uma de suas secretárias (devidamente hospedada em outro hotel de luxo na Croisette, sem direito a dormir, sempre atenta ao telefone que não parava de tocar, sempre respondendo aos correios eletrônicos de salas de cinema no mundo inteiro, que vinham junto com propostas de aumentar o pênis ou de ter orgasmos repetidos, apesar de todos os fi ltros contra mensagens indese-7 2
jáveis). Dependendo de um código com a cabeça, um dos seus dois assistentes dava o endereço e o telefone da secretária, ou dizia que naquele momento seus cartões tinham acabado.
O que está fazendo naquele “almoço”? Era hora de estar dormindo em Los Angeles, por mais tarde que tivesse chegado de uma festa. Javits conhece a resposta, mas não quer aceitá-la: tem medo de fi car sozinho. Inveja o homem que chegou cedo e começou a beber seu coquetel, com o olhar distante, aparentemente relaxado, sem grandes preocupações em mostrar-se ocupado ou importante.
Resolve convidá-lo para tomar algo com ele. Mas nota que já não está mais lá.
Neste momento, sente uma picada nas costas.
“Mosquitos. Por isso detesto festas na areia.”
Quando vai coçar a mordida, retira de seu corpo um pequeno alfi nete. Que brincadeira idiota. Olha para trás, e a uma distância de aproximadamente dois metros, com vários convidados passando entre eles, um negro com cabelos típicos da Jamaica dava gargalhadas, enquanto um grupo de mulheres o olhava com respeito e desejo.