Está muito cansado para aceitar a provocação. Melhor deixar o negro fi ngir-se de engraçadinho — isso é tudo que ele tem na vida para impressionar os outros.
— Idiota.
Os dois companheiros de mesa reagem à súbita mudança de po-sição do homem a quem estavam encarregados de proteger por 435
dólares por dia. Um deles leva a mão até o ombro direito, onde uma arma automática está em um coldre impossível de ser visto por fora do paletó. O outro levanta-se e, com um salto discreto (afi nal, estavam em uma festa), coloca-se entre o negro e seu patrão.
— Não foi nada — diz Javits. — Apenas uma brincadeira.
Mostra o alfi nete.
Aqueles dois idiotas estavam preparados para ataques com arma de fogo, punhais, agressões físicas, ameaças de atentados. Eram sem-7 3
pre os primeiros a entrar em seu quarto de hotel, prontos para atirar se fosse preciso. Adivinhavam quando alguém carregava uma arma (o que era comum em muitas cidades do mundo) e não desgrudavam o olho até que a pessoa em questão provasse não ser uma ameaça.
Quando Javits tomava um elevador, fi cava espremido entre os dois, que grudavam seus corpos um ao outro, criando uma espécie de parede. Nunca os tinha visto tirar as pistolas, porque uma vez que isso acontecesse, elas seriam disparadas; geralmente, resolviam qualquer problema apenas com o olhar e uma conversa calma.
Problemas? Nunca tivera nenhum problema desde que conseguira os “amigos”. Como se a simples presença dos dois fosse o sufi ciente para afastar os maus espíritos e as más intenções.
— Aquele homem. Um dos primeiros a chegar aqui, que se sentou sozinho naquela mesa — diz um. — Ele estava armado, não estava?
O outro murmura algo como “possivelmente”. Mas já fazia tempo desaparecera da festa pela porta principal. E fora vigiado o tempo todo, porque não sabiam para onde apontavam os olhos detrás dos óculos escuros que usava.
Relaxam. Um volta a cuidar do telefone, o outro fi xa os olhos no negro jamaicano, que retribui o olhar, sem qualquer medo. Há algo estranho com aquele homem; mas se tornasse a fazer qualquer coisa, a partir daquele dia iria precisar usar dentadura. Tudo seria feito com o máximo de discrição possível, na areia, longe dos olhos de todos, e por apenas um deles, enquanto o outro fi caria esperando com o dedo no gatilho. Provocações como essa podem ser apenas um disfarce, cujo único objetivo consiste em afastar os guarda-costas da vítima. Já estavam acostumados com esse velho truque.
— Tudo bem...
— Não está nada bem. Chamem uma ambulância. Não consigo mover minha mão.
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12:53 PM
Que sorte!
Ela esperava tudo naquela manhã, menos encontrar-se com o homem que — tinha certeza — iria mudar sua vida. Mas ele está ali, com seu ar desleixado de sempre, sentado com dois amigos, porque os poderosos não precisam de nada para mostrar do que são capazes.
Nem sequer usam guarda-costas.
Segundo Maureen, as pessoas em Cannes podiam ser divididas em duas categorias:
a) as bronzeadas, que passavam o dia inteiro no sol (porque eventualmente já eram vencedores), usavam um crachá solicitado nas áreas restritas do Festival. Quando chegavam em seus ho-téis, vários convites as esperavam — a grande maioria jogada na lata do lixo.
b) as pálidas, que corriam de um escritório escuro para o próximo, enfrentando testes, assistindo a coisas ótimas que se perderiam por causa do excesso de ofertas, ou tolerando verdadeiros horrores que podiam ganhar um lugar no sol (entre as bronzeadas), porque tinham o contato certo com a pessoa indicada.
Javits Wild ostenta um bronzeado invejável.
O evento que toma conta daquela pequena cidade do sul da França durante 12 dias, que faz aumentar todos os preços, que permite que apenas carros autorizados circulem pelas ruas, que enche o aeroporto de jatos privados e as praias de modelos, não é constituído apenas de um tapete vermelho cercado de fotógrafos por onde caminham as grandes estrelas em direção à porta do Palácio do Congresso.
Cannes não é sobre moda, é sobre cinema!
Embora o lado do luxo e do glamour fosse o mais visível, a verdadeira alma do Festival é o gigantesco mercado paralelo da indústria: compradores e vendedores vindos do mundo inteiro se encontram 7 5
para negociar produtos acabados, investimentos, idéias. Em um dia normal, 400 projeções são feitas em toda cidade — em sua maioria em apartamentos alugados por temporada, com gente espalhada desconfortavelmente em torno das camas, reclamando do calor e exigindo água mineral e atenções especiais, o que deixa os exibidores com os nervos à fl or da pele e um sorriso gelado no rosto. Precisam aceitar tudo, ceder a todas as provocações, porque é importante mostrar aquilo que demora geralmente anos para ser feito.
Ao mesmo tempo, enquanto essas 4.800 novas produções lutam com unhas e dentes pela chance de sair daquele quarto de hotel e ganhar uma verdadeira exibição em salas de cinema, o mundo dos sonhos começa a andar em sentido contrário: as novas tecnologias ganham terreno, as pessoas já não saem tanto de casa por causa da insegurança, do excesso de trabalho, dos canais de televisão a cabo
— nos quais podem escolher geralmente em torno de 500 fi lmes por dia, por um custo quase nulo.
E o que é pior: a internet hoje permite que todo mundo seja um cineasta. Portais especializados mostram fi lmes de bebês andando, homens e mulheres sendo decapitados nas guerras, mulheres que exibem seus corpos apenas pelo prazer de saber que alguém do outro lado estaria tendo um momento de prazer solitário, pessoas con-geladas, acidentes reais, cenas de esporte, desfi les de moda, vídeos de câmeras ocultas que pretendiam criar situações constrangedoras para os inocentes que passam diante delas.
Claro, as pessoas continuam a sair. Mas preferem gastar o dinheiro em restaurantes e roupas de marca, porque o resto está na tela de suas televisões de alta defi nição ou nos seus computadores.
Filmes. Já havia desaparecido em um passado longínquo a época em que todos se lembravam dos grandes vencedores da Palma de Ouro. Agora, se perguntassem quem havia ganhado no ano anterior, mesmo as pessoas que participaram do Festival eram incapazes de recordar. “Algum romeno”, dizia um. “Não, tenho certeza que foi 7 6
um alemão”, comentava outro. Iam sorrateiramente consultar o ca-tálogo e descobriam que tinha sido um italiano — que por sinal foi exibido apenas nos circuitos alternativos.
As salas de cinema, que depois de um período de concorrência com as locadoras de vídeo haviam voltado a crescer, parecem estar de novo em uma fase de decadência — competindo com DVDs de antigas produções que são entregues gratuitamente na compra de um jornal, locação através da internet, pirataria universal. Isso torna a distribuição mais selvagem: se um novo lançamento for considerado um investimento altíssimo por algum estúdio, eles forçam para que esteja no máximo de salas ao mesmo tempo, deixando pouco espaço para qualquer nova produção que se aventure no ramo.
E os poucos aventureiros que resolvem correr o risco — apesar de todos os sinais contrários — descobrem tarde demais que não basta ter um produto de qualidade nas mãos. Para que um fi lme chegue às grandes capitais do mundo os custos de promoção são proibitivos: anúncios de página inteira em jornais e revistas, recepções, assessores de imprensa, viagens de promoção, equipes cada vez mais caras, sofi sticados equipamentos de fi lmagem, mão-de-obra que começa a escassear. E o pior de todos os problemas: alguém que distribua o produto fi nal.
Mesmo assim, a cada ano continua a peregrinação de um lugar para o outro, horários marcados, a Superclasse que presta atenção a tudo menos ao que está sendo projetado na tela, companhias interessadas em pagar um décimo do preço justo para darem a “honra”