a determinado cineasta de ter seu trabalho mostrado na televisão, pedidos para que todo o material seja refeito de modo a não ofender as famílias, exigências de nova edição, promessas (nem sempre cumpridas) de que se mudarem por completo o roteiro e investirem em certo tema, terão um contrato no ano seguinte.
As pessoas ouvem, aceitam — porque não têm escolha. A Superclasse manda no mundo, seus argumentos são doces, sua voz suave, 7 7
seu sorriso delicado, mas suas decisões, defi nitivas. Eles sabem. Eles aceitam ou rejeitam. Eles têm o poder.
E o poder não negocia com ninguém, apenas consigo mesmo. Entretanto, nem tudo estava perdido. Tanto no mundo da fi cção, como no mundo real, sempre existia um herói.
E Maureen olha orgulhosa: o herói está diante de seus olhos!
O grande encontro que vai fi nalmente acontecer daqui a dois dias depois de quase três anos de trabalho, sonhos, telefonemas, viagens a Los Angeles, presentes, pedidos a amigos do seu Banco de Favores, interferência de um ex-amante seu, que tinha cursado com ela a escola de cinema, e achou que era muito mais seguro trabalhar em uma importante revista especializada no assunto do que se arriscar a perder a cabeça e o dinheiro.
“Falarei com ele”, dissera o ex-namorado. “Mas Javits não de pende de ninguém, nem mesmo de jornalistas que podem promover ou destruir seus produtos. Ele está acima de tudo: já pensamos em fazer uma reportagem para tentar descobrir como conseguiu ter nas mãos tantos exibidores, e nenhuma pessoa com quem trabalha quis prestar declarações a respeito. Falo, mas não coloco nenhuma pressão.”
Falou. Conseguiu que ele assistisse a Os segredos do porão. No dia seguinte, recebeu um telefonema dizendo que se encontrariam em Cannes.
Maureen sequer ousou dizer que estava a apenas dez minutos de táxi do seu escritório: marcou uma hora na longínqua cidade da França. Conseguiu um bilhete de avião para Paris, tomou um trem que demorou um dia inteiro para chegar ao local, exibiu um voucher a um mal-humorado gerente de um hotel de quinta categoria, instalou-se em um quarto de solteiro no qual tinha que passar por cima das malas cada vez que precisasse ir ao banheiro, arranjou — ainda com seu ex-namorado — convites para alguns eventos de segunda categoria, como a promoção de um novo tipo de vodka ou o lan-7 8
çamento de uma nova linha de camisetas; já era tarde demais para conseguir o passe que permite a entrada no Palácio dos Festivais.
Gastara um dinheiro acima do seu orçamento, e viajara mais de vinte horas seguidas, mas teria os seus dez minutos.
E tinha certeza que, no fi nal, sairia com um contrato e um futuro pela frente. Sim, a indústria do cinema vivia uma crise, mas e daí?
Os fi lmes (embora poucos) ainda não continuavam fazendo sucesso?
As cidades não estavam cheias de cartazes dos novos lançamentos? As revistas de celebridades traziam matérias sobre quem? Artistas de cinema! Maureen sabia — melhor dizendo, estava convencida — que a morte do cinema já havia sido decretada muitas vezes, e mesmo assim ele continuava sobrevivendo. “O cinema acabou” quando chegou a televisão. “O cinema acabou” quando chegaram as locadoras.
“O cinema acabou” quando a internet começou a permitir acessos a sites de pirataria. Mas o cinema estava ali, naquelas ruas da pequena cidade no Mediterrâneo, que devia sua fama justamente ao Festival.
Agora, tudo era uma questão de aproveitar a sorte que lhe caíra dos céus.
E aceitar tudo, absolutamente tudo. Javits Wild está ali. Javits já tinha visto seu fi lme. O tema tinha tudo para dar certo: a exploração sexual, voluntária ou forçada, estava ganhando um destaque muito grande na mídia por causa de uma série de casos de repercussão mundial. Era o momento certo para Os segredos do porão ter seus cartazes expostos na cadeia de exibição que controlava.
Javits Wild, o rebelde com causa, o homem que estava revolucio-nando a maneira com que os fi lmes atingiam o grande público. Apenas o ator Robert Redford havia tentado algo semelhante, com seu Sundance Film Festival, para cineastas independentes — mas mesmo assim, apesar de décadas de esforço, Redford ainda não tinha conseguido quebrar a grande barreira que movimentava as centenas de milhões de dólares nos Estados Unidos, na Europa e na Índia. Javits Wild, porém, era um vencedor.
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Javits Wild, a redenção dos cineastas, o grande mito, o aliado das minorias, o amigo dos artistas, o novo mecenas — que através de um inteligente sistema (que ela desconhecia por completo, mas sabia que dava resultado) agora atingia também salas no mundo inteiro.
Javits Wild havia lhe convidado para um encontro de dez minutos no dia seguinte. Isso queria simplesmente dizer: havia aceito seu projeto, e agora tudo era apenas uma questão de detalhes.
“Aceitarei tudo. Absolutamente tudo”, repete.
Evidente que em dez minutos Maureen não conseguirá dizer absolutamente nada do que havia passado durante os oito anos (melhor dizendo, um quarto da sua vida) que estivera envolvida com a produção de seu fi lme. Inútil explicar que havia cursado uma faculdade de cinema, dirigido alguns comerciais, feito dois curtas-metragens que tiveram uma ótima acolhida em diversos salões de cidades do interior, ou em bares alternativos em Nova York. Que, para levantar o milhão de dólares necessário para a produção profi ssional, hipote-cara a casa que recebera como herança de seus pais. Que esta era sua única chance, já que não teria outra casa para fazer a mesma coisa.
Tinha acompanhado de perto a carreira de seus outros amigos de curso, que depois de muito lutar haviam escolhido o mundo confortável dos comerciais — cada vez mais presentes — ou um emprego obscuro, mas garantido, em uma das muitas empresas que produziam seriados para a TV. Depois que seus pequenos trabalhos foram bem aceitos, começou a sonhar mais alto, e a partir daí já não tinha mais como controlar isso.
Estava convencida de que tinha uma missão: transformar esse mundo em um lugar melhor para as gerações vindouras. Juntar-se com outras pessoas iguais a ela, mostrar que a arte não era apenas uma maneira de entreter ou divertir uma sociedade perdida. Expor os defeitos dos líderes, salvar as crianças que neste momento mor-riam de fome em algum lugar da África. Denunciar os problemas do meio ambiente. Acabar com a injustiça social.
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Claro, era um projeto ambicioso, mas tinha certeza de que sua obstinação terminaria por levá-la a realizá-lo. Para isso, precisava purifi car sua alma, e sempre recorria às quatro forças que a guia-vam: amor, morte, poder e tempo. É necessário amar, porque somos amados por Deus. É necessária a consciência da morte, para entender bem a vida. É necessário lutar para crescer — mas sem cair na armadilha do poder que conseguimos com isso, porque sabemos que ele não vale nada. Finalmente, é necessário aceitar que nossa alma
— embora seja eterna — está neste momento presa na teia do tempo, com suas oportunidades e limitações.
Embora presa na teia do tempo, podia trabalhar com o que lhe dava prazer e entusiasmo. E através dos seus fi lmes seria capaz de deixar sua contribuição ao mundo que parecia se desintegrar à sua volta, mudar a realidade, transformar os seres humanos.
Quando seu pai morreu, depois de queixar-se a vida inteira de que jamais tivera a oportunidade de fazer o que sempre sonhou, ela entendeu algo muito importante: transformações acontecem justamente nesses momentos de crise.
Não gostaria de terminar a vida como ele. Não gostaria de dizer à sua fi lha “Eu quis, em determinado momento eu pude, mas não tive coragem de arriscar tudo”. Ao receber a herança, entendeu na mesma hora que esta lhe havia sido dada por uma única razão: permitir que cumprisse seu destino.
Aceitou o desafi o. Ao contrário das outras adolescentes que sempre desejavam ser atrizes famosas, seu sonho era contar histórias que as gerações seguintes ainda pudessem ver, sorrir e sonhar. Seu grande exemplo era Cidadão Kane: primeiro fi lme de um radialista que desejava criticar um poderoso magnata da imprensa americana, tornou-se um clássico não apenas por sua história, mas por lidar de maneira inovadora e criativa com os problemas éticos e técnicos da época. Bastou um simples fi lme para que jamais fosse esquecido.