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“Seu primeiro fi lme.”

É possível acertar logo de saída. Mesmo que seu autor, Orson Welles, nunca mais tenha feito nada à altura. Mesmo que ele tenha desaparecido do cenário (isso acontece) e agora se limitasse a ser estudado nos cursos de cinema: com toda certeza, em breve alguém viria “redescobrir” seu gênio. Cidadão Kane não fora seu único le-gado: provara a todos que bastava um excelente primeiro passo, e teria convites para o resto de sua vida.

Honraria esses convites. Prometera a si mesma jamais esquecer as difi culdades pelas quais passara, e fazer da sua vida algo que tornasse o ser humano mais digno.

E como existe apenas UM primeiro fi lme, concentrou todo seu esforço físico, suas preces, sua energia emocional em um único projeto. Ao contrário de seus amigos, que viviam enviando roteiros, propostas, idéias, e terminavam trabalhando em várias coisas ao mesmo tempo sem que nenhuma delas desse resultado, Maureen dedicou-se de corpo e alma a Os segredos do porão, a história de cinco freiras que recebem a visita de um maníaco sexual. Em vez de tentar convertê-lo à salvação cristã, entendem que o único diálo-go possível é aceitar as normas do seu mundo cheio de aberrações; decidem entregar seus corpos para fazer com que ele entenda a gló-

ria de Deus através do amor.

O seu plano era simples: as atrizes em Hollywood, por mais famosas que sejam, normalmente desaparecem dos elencos quando chegam aos 35 anos. Continuam freqüentando as páginas de revistas de celebridades por mais tempo, são vistas em leilões benefi centes, grandes festas, participam de causas humanitárias, e quando notam que vão realmente sumir dos holofotes, começam a se casar e se di-vorciar, criar escândalos públicos — tudo isso por mais uns meses, umas semanas, uns dias de glória. Ora, nesse período que vai do desemprego à obscuridade total, o dinheiro já não tem mais importância: aceitariam qualquer coisa para estar de novo nas telas.

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Maureen se aproximou de mulheres que há menos de uma década estavam no topo do mundo, agora sentiam que o chão começava a escorregar sob seus pés, e precisavam desesperadamente voltar para onde viviam antes. O roteiro era bom; foi enviado para seus agentes, que pediram um salário absurdo e escutaram um simples “não”

como resposta. Seu próximo passo foi bater na porta de cada uma; disse que já tinha dinheiro para o projeto, e todas terminaram aceitando — sempre pedindo segredo pelo fato de estarem trabalhando quase de graça.

Em uma indústria como aquela, era impossível começar pensando de maneira humilde. De vez em quando, em seus sonhos, o fantasma de Orson Welles aparecia: “Tente o impossível. Não comece por baixo, porque embaixo você já está. Suba rapidamente, antes que tirem a escada. Se tiver medo, faça uma prece, mas siga adiante.” Tinha uma ótima história, um elenco de primeiríssima qualidade, e sabia que era necessário produzir algo que fosse aceito pelos grandes estúdios e distribuidores, sem que com isso se obrigasse a abrir mão da qualidade.

Era possível e obrigatório que arte e comércio andassem juntos.

O resto era o resto: críticos adeptos de masturbação mental que adoravam fi lmes que ninguém compreendia. Pequenos circuitos alternativos em que todas as noites a mesma dúzia de pessoas saía das sessões para passar madrugadas em bares, fumando e comentando uma única cena (cujo signifi cado, aliás, era possivelmente completamente distinto da intenção com que fora fi lmada). Diretores que davam conferências para explicar o que deveria ser óbvio para a platéia. Encontros de sindicatos para reclamar que o Estado não apoiava o cinema local. Manifestos em revistas intelectuais, frutos de reuniões intermináveis, nos quais faziam as mesmas queixas sobre o desinteresse do governo em apoiar a arte. Uma ou outra nota publicada na grande imprensa e geralmente lida apenas pelos interessados ou pela família dos interessados.

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Quem muda o mundo? A Superclasse. Aqueles que fazem. Que interferem no comportamento, nos corações e mentes do maior nú-

mero de pessoas possível.

Por isso queria Javits. Queria o Oscar. Queria Cannes.

E já que para chegar a tudo isso era impossível um trabalho democrático — tudo que as outras pessoas queriam era dar opinião sobre a melhor maneira de fazer algo, sem jamais se envolverem com os riscos — ela simplesmente apostou tudo. Contratou a equipe que estava disponível, reescreveu durante meses o roteiro, convenceu ótimos — e desconhecidos — diretores de arte, fi gurinistas, atores coadjuvantes a participarem, prometendo quase nenhum dinheiro, mas muita visibilidade no futuro. Todos se impressionavam com a lista das cinco atrizes principais (“O orçamento deve ser muito, muito alto!”), pediam grandes salários no início, e terminavam convencidos de que participar de um projeto como aquele seria importantíssimo para seus currículos. Maureen estava tão contagiada pela idéia que o entusiasmo parecia abrir-lhe todas as portas.

Agora faltava o salto fi nal, aquilo que faria a diferença. Não basta para um escritor ou músico desenvolver algo de qualidade, é preciso que sua obra não termine mofando na estante ou na gaveta.

É preciso vi-si-bi-li-da-de!

Enviou uma cópia a apenas uma pessoa: Javits Wild. Usou todos os seus contatos. Foi humilhada, e mesmo assim seguiu adiante. Foi ignorada, mas isso não tirou sua coragem. Foi maltratada, ridicula-rizada, excluída, mas continuou a acreditar que era possível, porque colocara cada gota do seu sangue no que acabara de fazer. Até que seu ex-namorado entrou em cena, e Javits Wild marcou um encontro.

Está de olho nele durante o almoço, saboreando com antecipação o momento que passarão juntos, daqui a dois dias. De repente, nota que fi ca paralisado, com os olhos no vazio. Um dos seus amigos olha para trás, para os lados, sempre mantendo a mão dentro do paletó. O

outro pega seu celular e começa a digitar histericamente as teclas.

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Teria acontecido alguma coisa? Seguramente que não; as pessoas que estão mais perto continuam conversando, bebendo, desfrutando mais um dia de Festival, festas, sol e corpos bonitos.

Um dos homens tenta levantá-lo e fazê-lo caminhar, mas Javits parece não conseguir se mover. Não deve ser nada. Bebida em excesso, no máximo. Cansaço. Stress.

Não pode ser nada. Tinha chegado tão longe, estava tão próxi-ma e...

De longe, começou a escutar uma sirene. Deve ser a polícia, abrindo caminho no trânsito eternamente congestionado para alguma personalidade importante.

Um dos homens coloca o braço de Javits em seu ombro, e o carrega em direção à porta. A sirene se aproxima. O outro homem, sem tirar a mão de dentro do paletó, move a cabeça em todas as direções.

Em um dado momento seus olhos se cruzam.

Javits está sendo levado rampa acima por um de seus amigos, e Maureen se perguntava como alguém que parecia tão frágil era capaz de carregar um corpanzil daqueles sem muito esforço.

O som da sirene pára exatamente diante da grande tenda. A esta altura Javits já havia desaparecido com um de seus amigos, mas o segundo homem caminha em sua direção, ainda com uma das mãos dentro do paletó.

— O que aconteceu? — pergunta assustada. Porque anos de trabalho na arte de dirigir atores haviam lhe ensinado que a face do sujeito diante dela parecia feita de pedra, como a de um assassino profi ssional.

— Você sabe o que aconteceu — a voz tinha um sotaque que ela não conseguia identifi car.

— Vi que ele começou a passar mal. O que aconteceu?