— Se acha horrível, por que me chamou?
— Porque estamos precisando de uma pessoa horrível.
Gabriela ri. A mulher fi nalmente levanta a cabeça e a olha de cima a baixo.
— Gostei da sua roupa. Odeio pessoas vulgares.
O sonho de Gabriela voltava. O coração palpitou.
A mulher lhe estende um papel.
— Vá até a marcação.
E virando-se para a equipe:
— Apaguem os cigarros! Fechem a janela para não atrapalhar o som!
A “marcação” era uma cruz feita com fi ta adesiva amarela no solo. Desta maneira, a luz não precisava ser refeita, e a câmera não tinha que se movimentar — o ator estava no lugar indicado pelo equipamento técnico.
— Estou suando com o calor aqui. Posso pelo menos ir ao banheiro e colocar uma base, um pouco de maquiagem?
— Poder, claro que pode. Mas quando voltar, já não terá mais tempo para a gravação. Precisamos entregar esse material antes do fi nal da tarde.
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Todas as outras moças que entraram devem ter feito a mesma pergunta, e obtido a mesma resposta. Melhor não perder tempo — tira um lenço de papel da bolsa e toca levemente a face, enquanto se encaminha para a marca.
Um assistente vai para diante da câmera, enquanto Gabriela luta contra o tempo, tentando ler pelo menos uma vez o que estava escrito naquela meia folha de papel.
— Teste número 25, Gabriela Sherry, Agência Thompson.
“Vinte e cinco?”
— Rodando — disse a mulher de óculos.
O local fi cou em silêncio completo.
— “Não, não acredito no que está dizendo. Ninguém é capaz de cometer crimes sem uma razão.”
— Comece de novo. Você está falando com seu namorado.
— “Não. Não acredito no que está dizendo! Ninguém é capaz de cometer crimes assim, sem nenhuma razão.”
— A palavra “assim” não está no texto. Você acha que o roteirista, que trabalhou durante meses, não pensou na possibilidade de colocar “assim”? E não a eliminou porque achou inútil, superfi cial, desnecessária?
Gabriela respira fundo. Não tem mais nada a perder, exceto a pa-ciência. Agora vai fazer o que bem entende, sair dali, ir para a praia, ou voltar para dormir mais um pouco. Precisa repousar para estar em plena forma quando começarem os coquetéis durante a tarde.
Uma estranha, deliciosa calma toma conta dela. De repente, sente-se protegida, amada, agradecida por estar viva. Ninguém a obrigava a estar ali, agüentando de novo aquela humilhação toda.
Pela primeira vez em todos aqueles anos, estava consciente do seu poder, que julgava nunca ter existido.
— “Não, não acredito no que está dizendo. Ninguém é capaz de cometer crimes sem razão.”
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— Próxima frase.
A ordem tinha sido desnecessária. Gabriela ia continuar de qualquer jeito.
— “Melhor irmos até o médico. Acho que você está precisando de ajuda.”
— “Não” — contracenou a mulher de óculos, que fazia o papel de “namorado”.
— “Está bem. Não vamos ao médico. Vamos passear um pouco, e você me conta exatamente o que está acontecendo. Eu te amo. Se ninguém mais neste mundo se importa com você, eu me importo.”
As frases na folha de papel haviam terminado. O ambiente estava em silêncio. Uma estranha energia toma conta do local.
— Diga à moça que está esperando que pode ir embora — ordena a mulher de óculos a uma das pessoas presentes.
Será que era o que ela estava pensando?
— Vá até a ponta esquerda da praia, onde existe a marina que se encontra no fi nal da Croisette, em frente à Allée des Palmiers. Ali um barco estará esperando pontualmente à 1:55 PM para levá-la ao encontro do Sr. Gibson. Estamos enviando o vídeo agora, mas ele gosta de conhecer pessoalmente as pessoas com quem tem possibilidade de trabalhar.
Um sorriso se abre no rosto de Gabriela.
— Eu disse “possibilidade”. Não disse “vai trabalhar”.
Mesmo assim, o sorriso continua. Gibson!
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1:19 PM
Entre o inspetor Savoy e o legista, deitada sobre uma mesa de aço inoxidável, está uma bela jovem de aproximadamente 20 anos, completamente nua.
E morta.
— O senhor tem certeza?
O legista se dirige até uma pia, também de aço inoxidável. Retirou as luvas de borracha, atirou-as no lixo, e abriu a torneira.
— Absoluta certeza. Nenhum vestígio de droga.
— Então, o que aconteceu? Uma jovem como essa, ter um ataque cardíaco?
Tudo que se ouve na sala é o barulho da água correndo.
“Eles pensam sempre no óbvio: drogas, ataque cardíaco, coisas do tipo.”
Demora mais do que o necessário para terminar de lavar as mãos
— um pouco de suspense não fazia mal ao seu trabalho. Passa desin-fetante nos braços, e joga no lixo o material descartável que usara na autópsia. Depois se volta e pede que o inspetor olhe o corpo da moça de alto a baixo.
— Detalhadamente, sem nenhum pudor; faz parte de sua profi s-são saber prestar atenção aos detalhes.
Savoy examina cuidadosamente o cadáver. Em determinado momento, estende a mão para levantar um dos braços, mas o legista o detém.
— Não é necessário tocá-la.
Os olhos de Savoy percorrem o corpo nu da menina. A esta altura sabia bastante a respeito dela — Olivia Martins, fi lha de pais portugueses, namorando um jovem sem profi ssão defi nida, freqüentador das noites de Cannes, e que neste momento estava sendo interrogado longe dali. Um juiz autorizou que seu apartamento fosse aberto, e encontraram pequenos frascos de THC (tetraidrocanabinol, o prin-9 3
cipal elemento alucinógeno da marijuana, e que hoje em dia podia ser ingerido em uma mistura com óleo de gergelim, o que não deixa cheiro no ambiente e tem um efeito muito maior que a absorção através do fumo). Seis envelopes contendo um grama de cocaína cada um. Marcas de sangue no lençol que agora está sendo enviado para um laboratório. Um pequeno trafi cante, no máximo. Conhecido da polícia, com uma ou duas passagens pela prisão, mas sem que jamais tivesse sido acusado de violência física.
Olivia era linda, mesmo depois de morta. Sobrancelhas grossas, ar infantil, seios…
“Não posso pensar nisso. Sou um profi ssional.”
— Não vejo absolutamente nada.
O legista sorri — e Savoy fi ca levemente irritado com seu jeito arrogante. Aponta para uma pequena, imperceptível marca arroxeada entre o ombro esquerdo e o pescoço da moça.
Em seguida, mostra outra marca semelhante, no lado direito do torso, entre duas costelas.
— Poderia começar descrevendo detalhes técnicos, como obstru-
ção da veia jugular e da artéria carótida, ao mesmo tempo em que outra força semelhante era aplicada em determinado feixe de nervos, mas com tal precisão que é capaz de causar uma paralisia completa da parte superior do corpo...
Savoy não diz nada. O legista entende que não era hora de demonstrar sua cultura, ou brincar com a situação. Fica com pena de si mesmo: lidava com a morte todos os dias, vivia cercado de cadáveres e de gente séria, seus fi lhos jamais comentavam a profi ssão do pai, e nunca tinha assunto nos jantares, já que as pessoas detestam conversar sobre temas que consideram macabros. Mais de uma vez perguntou se havia escolhido a profi ssão certa.
— Ou seja: ela foi morta por estrangulamento.
Savoy continua em silêncio. Sua cabeça trabalhava a toda velocidade: estrangulamento no meio da Croisette, durante o dia?
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Os pais haviam sido entrevistados, e a menina saíra de casa com a mercadoria — ilegalmente, já que vendedores ambulantes não pagavam impostos ao governo, e portanto estavam proibidos de trabalhar.
“Mas isso não vem ao caso no momento.”
— Entretanto — continua o legista — há algo intrigante nisso.
Em um estrangulamento normal, as marcas aparecem em ambos os ombros — ou seja, a clássica cena em que alguém agarra o pescoço da vítima enquanto ela se debate para soltar-se. Neste caso, uma das mãos, melhor dizendo, um simples dedo impediu o sangue de atingir o cérebro, enquanto outro dedo fazia com que o corpo fi casse paralisado, incapaz de reagir. Algo que exige uma técnica sofi sticadíssima, e um conhecimento perfeito do organismo humano.