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Quando tinha dúvidas em qualquer decisão, gostava de lembrar o exemplo que recebera na adolescência: dizer “não” aos poderosos, mesmo que esteja correndo um risco altíssimo. Na quase totalidade das vezes, dava o passo certo. E nas poucas ocasiões em que dera o passo errado, viu que as conseqüências não foram tão graves como imaginava.

Seu pai. Que jamais pôde assistir ao sucesso do fi lho. Seu pai, que quando o sheik começou a comprar todos os terrenos disponí-

veis naquela parte do deserto para poder construir uma das cidades mais modernas do mundo, teve coragem de dizer a um dos seus emissários:

“Não vou vender. Há muitos séculos minha família está aqui.

Aqui enterramos nossos mortos. Aqui aprendemos a sobreviver às intempéries e aos invasores. Não se vende o lugar que Deus nos en-carregou de cuidar neste mundo.”

A história volta à sua cabeça.

Os emissários aumentaram o preço de compra. Como não conseguiam nada, voltaram irritados e dispostos a fazer o que fosse possível para tirar aquele homem dali. O sheik começava a fi car impaciente — gostaria de iniciar logo seu projeto porque tinha grandes planos, o preço do petróleo subira no mercado internacional, o dinheiro devia ser usado antes que as reservas se esgotassem e já não 1 0 0

houvesse mais possibilidade de criar uma infra-estrutura atraente aos investimentos estrangeiros.

Mas o velho Hussein continuava a recusar qualquer preço por sua propriedade. Até que um dia o sheik resolveu ir conversar diretamente com ele.

— Posso lhe oferecer tudo que desejar — disse para o comerciante de tecidos.

— Então dê uma educação adequada para meu fi lho. Ele já está com 16 anos, e não existe nenhuma perspectiva aqui.

— Em troca, você me vende a casa.

Houve um longo momento de silêncio, até que escutou seu pai, olhando nos olhos do sheik, dizer aquilo que jamais esperava ouvir.

— O senhor tem obrigação de educar os seus súditos. E não posso trocar o futuro da minha família pelo seu passado.

Lembra-se de ter visto uma tristeza imensa nos seus olhos, quando continuou:

— Se o meu fi lho puder ter pelo menos uma oportunidade na vida, aceito sua oferta.

O sheik saiu sem dizer nada. No dia seguinte, pediu que o comerciante lhe enviasse o rapaz para conversarem. Encontrou-o no palácio que havia sido construído ao lado do antigo porto, depois de passar por ruas interditadas, gigantescas gruas metálicas, operários trabalhando sem parar, quarteirões inteiros sendo demolidos.

O governante foi direto ao assunto:

— Sabe que desejo comprar a casa de seu pai. Resta muito pouco petróleo em nossa terra e antes que nossos poços dêem o último suspiro é necessário mudar nossa dependência, e descobrir outros caminhos. Provaremos ao mundo que temos capacidade de vender não apenas nosso óleo, como também nossos serviços. Entretanto, para dar os primeiros passos é necessário fazer algumas reformas importantes, como construir um bom aeroporto, por exemplo. Necessitamos de terras para que os estrangeiros possam construir seus 1 0 1

edifícios — meu sonho é justo, e minha intenção é boa. Vamos precisar de gente educada no mundo das fi nanças, e você ouviu a conversa com seu pai.

Hamid procurava disfarçar o medo; havia mais de uma dezena de pessoas assistindo à audiência. Mas o seu coração já tinha uma resposta pronta para cada pergunta formulada.

— O que deseja fazer?

— Estudar alta-costura.

As pessoas se entreolharam. Talvez não soubessem direito do que estava falando.

— Estudar alta-costura. Grande parte dos tecidos que meu pai compra é revendido para os estrangeiros, que por sua vez têm lucros cem vezes maiores quando os transformam em roupas de luxo.

Tenho certeza de que podemos fazer isso aqui. Estou convencido de que a moda será uma das maneiras de quebrar o preconceito que o resto do mundo tem contra nós. Se entenderem que não nos vestimos como bárbaros, vão terminar nos aceitando melhor.

Desta vez ouviu-se um murmúrio na corte. Estava falando de roupas? Aquilo era coisa de ocidentais, mais preocupados com o que se passava no exterior que no interior de uma pessoa.

— Por outro lado, o preço que meu pai está pagando é muito alto. Prefi ro que continue com a casa. Eu trabalharei com os tecidos que tem, e se o Deus Misericordioso assim desejar, conseguirei realizar o meu sonho. Assim como Sua Alteza, também sei onde quero chegar.

A corte ouvia, assombrada, um jovem desafi ar o grande líder da região e recusar-se a cumprir o desejo do próprio pai. Mas o sheik sorriu com a resposta.

— Onde se estuda alta-costura?

— Na França. Na Itália. Praticando com os mestres. Na verdade, existem algumas universidades, mas nada substitui a experiência. É

muito difícil, mas se o Deus Misericordioso quiser eu conseguirei.

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O sheik pediu que voltasse no fi nal da tarde. Hamid caminhou pelo porto, visitou o bazar, deslumbrou-se com as cores, os tecidos, os bordados — adorava cada chance que tinha de passear por ali.

Imaginou que tudo aquilo seria destruído em breve, e entristeceu-se porque uma parte do passado, da tradição, estaria perdida. Seria possível deter o progresso? Seria inteligente impedir o desenvolvi-mento de uma nação? Lembrou-se das muitas noites em claro que passou desenhando à luz de vela, reproduzindo os modelos que os beduínos usavam, temendo que também os costumes tribais terminassem destruídos pelas gruas e pelos investimentos estrangeiros.

Na hora marcada, retornou ao palácio. Havia ainda mais gente em torno do governante.

— Tomei duas decisões — disse o sheik. — A primeira: vou arcar com as suas despesas durante um ano. Penso que teremos sufi cientes rapazes interessados em fi nanças, mas ninguém até hoje veio a mim para dizer que se interessa por costura. Me parece uma loucura, mas todos dizem que sou louco com meus sonhos, e mesmo assim cheguei onde estou agora. Portanto, não posso desmentir meu próprio exemplo.

“Por outro lado, nenhum dos meus assessores tem qualquer contato com as pessoas a que se referiu, de modo que estarei pagando uma pequena mesada para que não se sinta obrigado a mendigar na rua. Quando voltar para cá, será como um vencedor; você representa nosso lugar e as pessoas precisam aprender a respeitar nossa cultura. Antes de sair, terá que aprender as línguas dos países aonde vai. Quais são?”

— Inglês, francês, italiano. Agradeço muito sua generosidade, mas o desejo de meu pai...

O sheik fez sinal para que se calasse.

— E minha segunda decisão é a seguinte. A casa do seu pai permanecerá onde está. Nos meus sonhos, ela será cercada de arranha-céus, o sol já não poderá entrar através das janelas, e ele acabará se 1 0 3

mudando. Mas a casa será conservada ali para sempre. No futuro, as pessoas se lembrarão de mim, e dirão: “Ele foi grande, porque mudou seu país. E ele foi justo, porque respeitou o direito de um vendedor de tecidos.”

O helicóptero pousa na extremidade do píer, e as recordações são deixadas de lado. Hamid desce primeiro, e estende a mão para ajudar Ewa. Toca sua pele, olha com orgulho para a mulher loura, toda vestida de branco, a roupa irradiando o sol que brilhava à sua volta, a outra mão segurando o discreto e belo chapéu de tom levemente bege. Caminham entre as fi las de iates ancorados nos dois lados, em direção ao carro que os espera já com o motorista segurando a porta aberta.

Segura a mão da mulher e sussurra ao seu ouvido:

— Espero que tenha gostado do almoço. São grandes coleciona-dores de arte. E o fato de terem colocado um helicóptero à disposi-

ção dos seus convidados é muito generoso da parte deles.

— Adorei.

Mas o que Ewa queria dizer mesmo: “Detestei. E além do mais, estou assustada. Recebi uma mensagem no meu telefone celular, e sei quem a enviou, embora não possa identifi car o número.”