Entram no gigantesco carro que servia apenas para duas pessoas; o resto era espaço vazio. O ar-condicionado está na temperatura ideal, a música é perfeita para um momento daqueles. Ele pergunta se deseja um pouco de champagne. Não, uma água mineral é o bastante.
— Vi seu ex-marido ontem no bar do hotel, antes de sair para jantar.
— Impossível. Ele não tem negócios a fazer em Cannes.
Ela gostaria de ter dito: “Talvez você esteja certo, havia uma mensagem no meu telefone. É melhor pegarmos o primeiro avião e partir imediatamente daqui.”
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— Tenho certeza.
Hamid nota que sua mulher não está com muita vontade de conversar. Tinha sido educado para respeitar a privacidade daqueles a quem amava, e obriga-se a pensar em outra coisa.
Pede licença, dá o telefonema que precisava para o seu agente em Nova York. Escuta com paciência duas ou três frases, e interrompe com delicadeza as notícias sobre as tendências do mercado. Aquilo tudo não dura mais de dois minutos.
Faz uma segunda ligação para o diretor que havia escolhido para seu primeiro fi lme. Ele está indo até o barco para encontrar-se com a Celebridade — e sim, a moça tinha sido selecionada, e deveria aparecer às duas da tarde.
Vira-se de novo para Ewa; mas ela continua aparentemente sem disposição para conversar, o olhar distante, sem fi xar-se em absolutamente nada do que se passava além dos vidros da limusine. Talvez esteja preocupada porque terá pouco tempo no hoteclass="underline" será preciso trocar rapidamente de roupa, e partir para um desfi le não muito importante, de uma costureira belga. Precisa ver com seus próprios olhos a tal modelo africana, Jasmine, que seus assessores diziam ser o rosto ideal para sua próxima coleção.
Queria saber como a moça vai agüentar a pressão de um evento em Cannes. Se tudo der certo, será uma de suas principais estrelas na Semana de Moda de Paris, marcada para outubro.
Ewa mantém os olhos fi xos na vidraça do carro, mas não está vendo absolutamente nada do que se passa do lado de fora. Conhece bem o senhor bem-vestido, de maneiras doces, criativo, lutador, que está sentado ao seu lado. Sabia que a deseja como jamais um homem desejou uma mulher, exceto aquele a quem havia deixado. Pode confi ar nele, embora esteja sempre cercado pelas mulheres mais belas do planeta. Ali está uma pessoa honesta, trabalhadora, ousada, que havia enfrentado muitos desafi os para chegar até aquela limusine e 1 0 5
poder oferecer-lhe uma taça de champagne ou um copo de cristal com sua água mineral preferida.
Poderoso, capaz de protegê-la de qualquer perigo, menos de um, o pior de todos.
Seu ex-marido.
Não quer despertar suspeitas agora, pegando seu telefone celular para reler o que está escrito ali: já conhece a mensagem de cor:
“Destruí um mundo por você, Katyusha.”
Não entende o conteúdo. Mas ninguém mais na face da Terra a chamaria por aquele nome.
Havia se educado para amar Hamid, embora deteste a vida que leva, as festas que freqüenta, os amigos que tem. Não sabe se conseguiu — há momentos em que entra em uma depressão tão profunda que pensa em suicidar-se. O que sabe é que ele foi sua salvação em um momento em que se julgava perdida para sempre, incapaz de sair da armadilha do seu casamento.
Muitos anos atrás, havia se apaixonado por um anjo. Que tivera uma infância triste, fora convocado pelo exercito soviético para uma guerra absurda no Afeganistão, voltara para um país que começava a se desintegrar, e mesmo assim soubera superar todas as difi culdades.
Começou a trabalhar duro, enfrentou tensões gigantescas para conseguir empréstimos junto a pessoas perigosas, passou noites em claro pensando em como pagá-los, agüentou sem reclamar a corrupção do sistema, já que era necessário tendo que subornar algum funcionário do governo sempre que pedia uma nova licença para um empreendimento que iria melhorar a qualidade de vida do seu povo. Era idealista e amoroso. De dia, conseguia exercer sua liderança sem ser questionado, porque a vida lhe educara e o serviço militar o fi zera entender o sistema de hierarquia. De noite, abraçava-se a ela e pedia que o protegesse, que o aconselhasse, que rezasse para que tudo cor-1 0 6
resse bem, que conseguisse sair das muitas armadilhas que apareciam diariamente no seu caminho.
Ewa acariciava seus cabelos, garantia que tudo estava bem, que era um homem bom, e que Deus sempre recompensava os justos.
Pouco a pouco, as difi culdades foram dando lugar às oportunidades. A pequena empresa que montara depois de muito mendigar para assinar contratos começou a crescer, porque era um dos poucos que havia investido em algo que ninguém acreditava que podia dar certo num país que ainda sofria por causa de sistemas de comunicação obsoletos. O governo mudou e a corrupção diminuiu. O dinheiro começou a entrar — lentamente no início e depois em grandes, imensas quantidades. Mesmo assim, os dois jamais esqueciam as difi culdades pelas quais haviam passado, e nunca desperdiçavam um centavo; contribuíam com obras de caridade e associações de ex-combatentes, viviam sem grandes luxos, sonhando com o dia em que poderiam deixar tudo e passar a viver em uma casa retirada do mundo. Quando isso acontecesse, esqueceriam que tinham sido obrigados a conviver com gente que não tinha ética e dignidade.
Gastavam grande parte do seu tempo em aeroportos, aviões e hotéis, trabalhavam durante 18 horas por dia, e durante anos jamais pude-ram desfrutar um mês de férias juntos.
Mas alimentavam o mesmo sonho: chegaria o momento em que aquele ritmo frenético se transformaria em uma lembrança distante.
As cicatrizes que esse período deixara seriam medalhas de uma luta travada em nome da fé e dos sonhos. Afi nal de contas, o ser humano
— assim acreditava então — havia nascido para amar e conviver com a pessoa amada.
E o processo começou a inverter-se. Já não mais mendigavam contratos, eles começaram a aparecer espontaneamente. Uma revista de negócios importante publicou uma matéria de capa com seu marido, e a sociedade local começou a enviar convites para festas 1 0 7
e eventos. Passaram a ser tratados como rei e rainha, e o dinheiro entrava em quantidades cada vez maiores.
Era preciso adaptar-se aos novos tempos: compraram uma bela casa em Moscou, tinham todo o conforto possível. Os antigos associados de seu marido — que no início lhe haviam emprestado dinheiro, pago em cada centavo, apesar dos juros exorbitantes — terminaram na prisão por razões que ela não conhecia e não gostaria de conhecer. Mesmo assim, a partir de determinada época, Igor passou a ser acompanhado por guarda-costas; em um primeiro momento, apenas dois deles, veteranos e amigos dos combates do Afeganistão.
Outros se incorporaram à medida que a pequena fi rma se transformava em uma gigantesca multinacional, abrindo fi liais em diversos países, presente em sete diferentes fusos horários, com investimentos cada vez mais altos e mais diversifi cados.
Ewa passava os dias em centros comerciais ou em chás com amigas, nos quais conversavam sempre as mesmas coisas. Igor queria ir mais longe.
Sempre mais longe, o que não era de se estranhar; afi nal de contas, só chegara onde estava agora por causa da sua ambição e do seu trabalho incansável. Quando lhe perguntava se não haviam chegado muito além do que tinham planejado e se não seria o momento de se afastar de tudo para realizar o sonho de viver apenas o amor que um sentia pelo outro, ele pedia um pouco mais de tempo. Foi aí que co-meçou a beber. Certa noite, depois de um longo jantar com amigos regado a vodka e vinho, ela teve uma crise de nervos quando voltou para casa. Disse que não agüentava mais aquela vida vazia, precisava fazer alguma coisa ou terminaria louca.
Igor perguntou se não estava satisfeita com o que tinha.
— Estou satisfeita. Justamente este é o problema: estou satisfeita, mas você não. E não estará nunca. É inseguro, tem medo de perder tudo que conquistou, não sabe sair de um combate quando já con-1 0 8