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seguiu o que queria. Você irá terminar se destruindo. E você está acabando com o nosso casamento e com o meu amor.

Não era a primeira vez que falava assim com o marido; suas conversas sempre tinham sido honestas, mas ela sentiu que estava chegando ao seu limite. Não agüentava mais comprar, detestava os chás, odiava os programas de televisão a que precisava fi car assistindo enquanto aguardava sua volta do trabalho.

— Não diga isso. Não diga que estou acabando com nosso amor.

Eu prometo que em breve vamos deixar tudo isso para trás, tenha um pouco de paciência. Talvez seja o momento de começar a fazer alguma coisa, porque deve estar levando uma vida infernal.

Pelo menos ele reconhecia isso.

— O que gostaria de fazer?

Sim, talvez essa fosse a saída.

— Trabalhar com moda. Sempre sonhei com isso.

O marido satisfez imediatamente seu desejo. Na semana seguinte, apareceu com as chaves de uma loja em um dos melhores centros comerciais de Moscou. Ewa fi cou entusiasmada — sua vida agora ganhava outro sentido, os longos dias e noites de espera terminariam para sempre. Pediu dinheiro emprestado, e Igor investiu o que foi necessá-

rio para que tivesse uma chance de alcançar o sucesso merecido.

Os banquetes e festas — nos quais se sentia sempre como uma estranha — passaram a ter um novo interesse; graças aos contatos, em apenas dois anos dirigia o mais cobiçado local de alta-costura em Moscou. Embora tivesse uma conta conjunta com seu marido, e ele jamais fi zesse questão de saber quanto gastava, fez questão de pagar o dinheiro que ele havia lhe emprestado. Começou a viajar sozinha, em busca de desenhos e marcas exclusivas. Contratou empregados, passou a entender de contabilidade, transformou-se — para sua pró-

pria surpresa — em uma excelente mulher de negócios.

Igor havia lhe ensinado tudo. Igor era o grande modelo, o exemplo a ser seguido.

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E justamente quando tudo estava bem, sua vida ganhara um novo sentido, o Anjo da Luz que iluminara seu caminho começou a dar mostras de desequilíbrio.

Estavam em um restaurante em Irkutsk, depois de terem passado o fi nal de semana em uma aldeia de pescadores na margem do lago Baikal. A essa altura a companhia tinha dois aviões e um helicóptero, de modo que podiam viajar o mais longe possível e voltar na segunda-feira para começarem tudo de novo. Nenhum dos dois reclamava do pouco tempo que passavam juntos, mas era evidente que os muitos anos de luta estavam começando a deixar marcas.

Mesmo assim, sabiam que o amor era mais forte que tudo e, enquanto estivessem juntos, estariam a salvo.

No meio do jantar à luz de velas, um mendigo visivelmente embriagado entrou no restaurante e caminhou até eles e sentou-se na mesa para conversar, interrompendo aquele precioso momento em que estavam sós, longe da correria de Moscou. Um minuto depois, o dono já estava pronto para retirá-lo dali, mas Igor pediu que não fi zesse nada — ele mesmo se encarregaria do assunto. O mendigo fi -

cou animado, pegou a garrafa de vodka e bebeu no próprio gargalo, começou a fazer perguntas (“Quem são vocês? Como conseguem ter dinheiro, quando todos vivemos na pobreza aqui?”), reclamou da vida e do governo. Igor agüentou tudo aquilo por alguns minutos.

Em seguida pediu licença, pegou o sujeito pelo braço e o levou até o lado de fora — o restaurante encontrava-se em uma rua que nem sequer calçamento tinha. Seus dois guarda-costas o esperavam. Ewa viu pela janela que seu marido trocou apenas algumas palavras com eles, algo como “Fiquem de olho na minha mulher”, e caminhou para uma pequena rua lateral. Voltou minutos depois, sorrindo.

— Não irá perturbar mais ninguém — disse.

Ewa notou que seus olhos haviam mudado; pareciam tomados de uma imensa alegria, alegria maior do que demonstrara durante o fi nal de semana que passaram juntos.

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— O que você fez?

Mas Igor pediu mais vodka. Ambos beberam até o fi nal da noite — ele sorrindo, alegre, e ela querendo entender apenas o que lhe interessava: talvez tivesse dado dinheiro ao homem para sair da miséria, já que sempre tinha demonstrado generosidade com o seu próximo menos favorecido.

Quando voltaram para a suíte do hotel, ele fez um comentário:

— Aprendi isso ainda na minha juventude, quando lutava em uma guerra injusta, por um ideal que não acreditava. Sempre é possível acabar com a miséria de maneira defi nitiva.

Não, Igor não pode estar ali, Hamid deve ter feito alguma confusão. Os dois tinham se visto apenas uma vez, na portaria do edifício onde moravam em Londres, quando ele descobriu o endereço e foi até lá para implorar que Ewa voltasse. Hamid o recebeu, mas não o deixou entrar, ameaçando chamar a polícia. Durante uma semana ela se recusou a sair de casa, dizendo que estava com dor de cabeça, mas sabendo que na verdade o Anjo da Luz havia se transformado na Maldade Absoluta.

Abre de novo o celular. Lê de novo as mensagens.

Katyusha. Só mesmo uma pessoa era capaz de chamá-la assim. A pessoa que mora no seu passado e aterrorizará o seu presente pelo resto da vida, por mais que se julgue protegida, distante, vivendo em um mundo a que ele não tem acesso.

A mesma pessoa que, na volta de Irkutsk — como se libertado de uma gigantesca pressão —, começara a falar mais livremente sobre as sombras que povoavam sua alma.

“Ninguém, absolutamente ninguém pode ameaçar nossa intimidade. Já basta o tempo que gastamos para criar uma sociedade mais justa e mais humana; quem não respeitar os nossos momentos de liberdade deve ser afastado de tal maneira que jamais pense em voltar.”

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Ewa tinha medo de perguntar o que signifi cava “de tal maneira”.

Julgava conhecer seu marido, mas de uma hora para a outra parecia que um vulcão submerso havia começado a rugir, e as ondas de choque se propagavam com cada vez mais intensidade. Lembrou-se de algumas conversas noturnas com o jovem rapaz que um dia tivera que se defender durante a guerra no Afeganistão, e para isso fora necessário matar. Jamais vira arrependimento ou remorso nos seus olhos:

“Sobrevivi, e é isso que importa. Minha vida podia ter acabado em uma tarde de sol, em um amanhecer nas montanhas cobertas de neve, em uma noite em que jogávamos baralho na tenda de campanha, certos de que a situação estava sob controle. E se tivesse morrido, isso não mudaria em nada a face do mundo; seria mais uma estatística para o exército, e mais uma medalha para a família.

“Mas Jesus me ajudou — sempre reagi a tempo. Porque atravessei as provas mais duras pelas quais um homem pode passar, o destino me concedeu as duas coisas mais importantes na vida: sucesso no trabalho, e a pessoa que amo.”

Uma coisa era reagir para salvar a própria vida, a outra era “afastar para sempre” um pobre bêbado que havia interrompido um jantar, e que poderia ter sido facilmente afastado pelo dono do restaurante.

Aquilo não lhe saía da cabeça; ia para sua loja mais cedo, e quando voltava para casa fi cava até tarde no computador. Queria evitar uma pergunta. Conseguiu controlar-se durante alguns meses marcados pelos programas de sempre: viagens, feiras, jantares, encontros, leilões de caridade. Chegou mesmo a achar que havia interpretado mal o que o marido dissera em Irkutsk, e culpou-se por ser tão superfi cial em seu julgamento.

Com o passar do tempo, a pergunta foi perdendo sua importância, até o dia em que participavam de um jantar de gala em um dos mais luxuosos restaurantes de Milão, que seria encerrado com um leilão benefi cente. Ambos estavam na mesma cidade por razões 1 1 2

diversas: ele para acertar detalhes de um contrato com uma fi rma italiana, Ewa para a Semana de Moda, quando pretendia fazer algumas compras para a sua boutique em Moscou.

E o que tinha acontecido no meio da Sibéria tornou a acontecer em uma das cidades mais sofi sticadas do mundo. Desta vez um amigo seu, também embriagado, sentou-se na mesa sem pedir permissão e começou a brincar, dizendo coisas inconvenientes para ambos. Ewa notou a mão de Igor crispar-se em um dos talheres. Com todo cuidado e gentileza possíveis, pediu ao seu conhecido que se reti rasse.