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A esta altura, já tinha bebido várias taças de Asti Spumante, como os italianos se referem ao que antes era chamado de “champagne”.

O uso da palavra foi proibido por causa das chamadas “reservas de domínio”: champagne era o vinho branco com determinado tipo de bactéria que através de um rigoroso processo de controle de qualidade começa a gerar gases no interior da garrafa à medida que enve-lhece por um mínimo de 15 meses — o nome referia-se à região em que era produzido. Spumante era exatamente a mesma coisa, mas a lei européia não permitia que usassem o nome francês, já que seus vinhedos se encontravam em locais diferentes.

Começaram a conversar sobre a bebida e as leis, enquanto ela procurava afastar a pergunta que já havia esquecido, e agora voltava com toda força. Enquanto conversavam, bebiam mais. Até que houve um momento em que não conseguiu se controlar:

— Que mal há quando alguém perde um pouco a elegância e vem nos incomodar?

A voz de Igor mudou de tom.

— Raramente viajamos juntos. Claro, sempre penso a respeito do mundo em que vivemos: sufocados pelas mentiras, acreditando mais na ciência que nos valores espirituais, nos obrigando a alimentar nossas almas com coisas que a sociedade diz que são importantes, enquanto vamos morrendo aos poucos, porque entendemos o que se passa à nossa volta, sabemos que estamos sendo forçados a fazer 1 1 3

coisas que não planejamos, e mesmo assim somos incapazes de deixar tudo para dedicar nossos dias e noites à verdadeira felicidade: família, natureza, amor. Por quê? Porque somos obrigados a terminar aquilo que começamos, de modo que possamos conseguir a tão desejada estabilidade fi nanceira que nos permita desfrutar o resto de nossas vidas dedicados apenas um para o outro. Porque somos responsáveis. Sei que você às vezes acha que estou trabalhando demais: não é verdade. Estou construindo nosso futuro, e em breve estare-mos livres para sonhar e viver nossos sonhos.

Estabilidade fi nanceira era o que não faltava ao casal. Além do mais, não tinham dívidas, e podiam levantar daquela mesa apenas com seus cartões de crédito, deixar o mundo que Igor parecia detes-tar, e recomeçar tudo de novo, sem jamais precisar se preocupar com dinheiro. Já tinha conversado muitas vezes sobre isso, e Igor sempre repetia o que acabara de dizer: faltava mais um pouco. Sempre mais um pouco.

Entretanto, não era hora de discutir o futuro do casal.

— Deus pensou em tudo — continuou ele. — Estamos juntos porque essa foi Sua decisão. Sem você, não sei se teria chegado tão longe, embora ainda não consiga compreender sua importância na minha vida. Foi Ele que nos colocou lado a lado, e me emprestou Seu poder para defendê-la sempre que for necessário. Ensinou-me que tudo obedece a um plano determinado; preciso respeitá-lo em seus menores detalhes. Se não fosse assim, ou eu estaria morto em Kabul, ou na miséria em Moscou.

E foi aí que o Spumante, ou champagne, mostrou do que é capaz, independente do nome que usem para batizá-lo.

— O que aconteceu com aquele mendigo no meio da Sibéria?

Igor não se lembrava do que estava falando. Ewa tornou a contar o que aconteceu dentro do restaurante.

— Gostaria de saber o resto.

— Eu o salvei.

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Ela respirou aliviada.

— Eu o salvei de uma vida imunda, sem perspectivas, com aqueles invernos congelantes, o corpo sendo lentamente destruído pelo álcool.

Eu fi z com que sua alma pudesse partir em direção à luz, porque no momento em que entrou no restaurante para destruir nossa felicidade, entendi que seu espírito estava sendo habitado pelo Maligno.

Ewa notou que seu coração disparava. Não precisava pedir que dissesse “Eu o matei”. Estava claro.

— Sem você, eu não existo. Qualquer coisa, qualquer pessoa que tente nos separar ou destruir o pouco tempo que temos juntos neste momento de nossas vidas deve ser tratada como merece.

Ou seja, talvez estivesse querendo dizer: deve ser morta. Será que isso já tinha acontecido antes, e ela não havia notado? Bebeu, e bebeu mais, enquanto de novo Igor começava a relaxar: como não abria sua alma com ninguém, adorava cada conversa que tinham.

— Falamos a mesma língua — continuou. — Vemos o mundo da mesma maneira. Nos completamos um ao outro com a perfeição que só é permitida àqueles que colocam o amor acima de tudo. Repito: sem você, eu não existo.

“Olhe para a Superclasse que nos cerca, que se crê tão importante, com consciência social, pagando fortunas por certas peças sem valor em leilões de caridade que vão desde ‘coleta de fundos para salvar os desabrigados de Ruanda’ a um ‘jantar benefi cente pela preservação dos pandas chineses’. Para eles, os pandas e os esfomeados querem dizer a mesma coisa; sentem-se especiais, acima da média, porque estão fazendo algo útil. Já estiveram em um combate? Não: eles criam as guerras, mas não lutam nelas. Se o resultado é bom, recebem todos os cumprimentos. Se o resultado é ruim, a culpa é dos outros. Eles se amam.”

— Meu amor, gostaria de lhe perguntar outra coisa...

Neste momento, um apresentador subia ao palco e agradecia a todos que haviam comparecido ao jantar. O dinheiro arrecadado 1 1 5

seria usado para a compra de medicamentos nos campos de refugiados na África.

— Você sabe o que ele não disse? — continuou Igor, como se não tivesse escutado sua pergunta. — Que apenas 10% do montante chegará ao destino. O resto será utilizado para pagar este evento, os custos do jantar, a divulgação, as pessoas que trabalharam — melhor dizendo, aquelas que tiveram a “brilhante idéia”, tudo isso a preços exorbitantes. Usam a miséria como meio de fi carem cada vez mais ricos.

— E por que estamos aqui?

— Porque precisamos estar aqui. Faz parte do meu trabalho. Não tenho a menor intenção de salvar Ruanda ou de enviar medicamentos aos refugiados — mas estou consciente disso. O resto do público está usando seu dinheiro para limpar suas consciências e suas almas da culpa. Enquanto o genocídio ocorria no país, eu fi nanciei um pequeno exército de amigos, que impediu mais de duas mil mortes entre as tribos hútu e tútsi. Sabia disso?

— Você nunca me contou.

— Não é necessário. Você sabe como me preocupo com os outros.

O leilão começa com uma pequena mala de viagem Louis Vuit-ton. É arrematada por dez vezes o seu valor. Igor assiste a tudo aquilo impassível, enquanto ela bebe outra taça, perguntando se deve ou não fazer a tal pergunta.

Um artista plástico, ao som de Marilyn Monroe cantando, pinta uma tela enquanto dança. Os lances vão às alturas — o equivalente ao preço de um pequeno apartamento em Moscou.

Mais uma taça. Mais uma peça a ser vendida. Mais um preço absurdo.

Bebeu tanto naquela noite que teve que ser carregada até o hotel.

Antes que ele a colocasse na cama, ainda consciente, fi nalmente teve coragem:

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— E se eu lhe deixasse algum dia?

— Beba menos da próxima vez.

— Responda.

— Isso jamais poderia acontecer. Nosso casamento é perfeito.

A lucidez volta, mas entende que agora tem uma desculpa, e fi nge-se mais bêbada ainda.

— Entretanto, se isso acontecesse?

— Eu faria com que voltasse. E sei como conseguir as coisas que desejo. Mesmo que fosse necessário destruir universos inteiros.

— E se eu arranjasse outro homem?

O olhar dele não parecia aborrecido, mas benevolente.

— Mesmo que dormisse com todos os homens da Terra, meu amor é mais forte.

E desde então, o que no início parecia uma bênção, começou a transformar-se em um pesadelo. Estava casada com um monstro, um assassino. O que era aquela história de fi nanciar um exército de mercenários para salvar uma luta tribal? Quantos homens havia matado para impedir que atrapalhassem a tranqüilidade do casal? Evidente que podia culpar a guerra, os traumas, os momentos difíceis pelos quais ele havia passado; mas muitos outros viveram a mesma coisa, e não tinham saído com a idéia de que exerciam a Justiça Divina, cumpriam o Grande Plano Superior.