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— Não tenho ciúmes — repetia Igor sempre que ia viajar a trabalho. — Porque você sabe o quanto te amo, e eu sei o quanto me ama. Jamais ocorrerá qualquer coisa que desestabilize nossa vida em comum.

Agora estava mais convencida que nunca: não era amor. Era algo mórbido, que cabia a ela aceitar, e viver prisioneira pelo resto da vida do sentimento de terror.

Ou tentar libertar-se o mais cedo possível, na primeira oportunidade que surgisse.

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Apareceram várias. Mas o mais insistente, o mais perseverante, era justamente o homem com quem jamais imaginaria ter uma re-lação sólida. O costureiro que deslumbrava o mundo da moda, que ia fi cando cada vez mais famoso, recebendo uma quantidade imensa de dinheiro do seu país para que o mundo pudesse entender que

“as tribos nômades” tinham valores sólidos, que iam além do terror imposto por uma minoria religiosa. O homem que tinha o mundo da moda cada vez mais aos seus pés.

A cada feira em que se encontravam, ele era capaz de largar tudo, desmarcar almoços e jantares, apenas para que pudessem fi car algum tempo juntos, em paz, trancados em um quarto de hotel, muitas vezes sem sequer fazer amor. Assistiam televisão, comiam, ela bebia (ele jamais tocava em uma gota de álcool), saíam para passear pelos parques, entravam em livrarias, conversavam com estranhos, falavam pouco do passado, nada do futuro, e muito do presente.

Resistiu o quanto pode, não estava, e jamais esteve apaixonada por ele. Mas quando lhe propôs que deixasse tudo de lado e se mudasse para Londres, aceitou na hora. Era a única saída do seu inferno particular.

Uma outra mensagem acaba de entrar em seu telefone. Não pode ser; já não se comunicavam há anos.

“Destruí outro mundo por sua causa, Katyusha.”

— Quem é?

— Não tenho a menor idéia. Não mostra o número.

Queria dizer: “Estou aterrorizada.”

— Estamos chegando. Lembre-se de que temos pouco tempo.

A limusine tem que fazer algumas manobras para chegar até a entrada do Hotel Martinez. Em ambos os lados, por detrás de barreiras de metal colocadas pela polícia, pessoas de todas as idades passam o dia inteiro esperando ver alguma celebridade de perto. Tiram fotos 1 1 8

com suas câmeras digitais, contam aos seus amigos, enviam por internet para as comunidades virtuais de que faziam parte. Sentiriam que a longa espera estava justifi cada por aquele simples e único momento de glória: conseguiram ver a atriz, o ator, o apresentador de TV!

Mesmo sendo graças a eles que a fábrica continue produzindo, não têm autorização para se aproximar; guarda-costas em lugares estratégicos exigem a todos que entram uma prova de que estão hospedados no hotel, ou têm um encontro com alguém ali. Nesta hora, é preciso tirar do bolso os cartões magnéticos que servem de chaves, ou serão barrados na frente de todo mundo. Se for o caso de uma reunião de trabalho ou de um convite para um drinque no bar, dão o nome aos seguranças e, diante do olhar de todos, aguardam a che-cagem: verdade ou mentira. O guarda-costas usa seu rádio para chamar a recepção, o tempo parece não terminar nunca, e fi nal mente são admitidos — depois da humilhação pública.

Exceto para os que entram de limusine, claro.

As duas portas do Maybach branco foram abertas — uma pelo motorista, a outra pelo porteiro do hotel. As câmeras se voltam para Ewa e começam a disparar; embora ninguém a conheça, se está hospedada no Martinez, se chega em um carro caríssimo, com toda certeza é alguém importante. Talvez a amante do homem ao seu lado

— e neste caso, se ele estivesse escondendo algum caso extraconjugal, sempre há a possibilidade de enviar as fotos para alguma revista de escândalos. Ou quem sabe a bela mulher de cabelos ruivos é uma famosíssima celebridade estrangeira, que talvez ainda não fosse conhecida na França? Mais tarde iriam descobrir seu nome nas chamadas revistas “people”, e fi cariam contentes de terem estado a quatro ou cinco metros dela.

Hamid olha para a pequena multidão espremida por detrás das barreiras de ferro. Jamais entendeu isso porque fora criado em um lugar onde essas coisas não acontecem. Certa vez perguntou a um amigo por que tamanho interesse:

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— Não pense que está sempre diante de fãs — respondeu o amigo. — Desde que o mundo é mundo, o homem acredita que a proximidade de algo inatingível e misterioso o cubra de bênçãos. Por isso as peregrinações em busca de gurus e lugares sagrados.

— Em Cannes?

— Em qualquer lugar onde uma celebridade inatingível apareça de longe; seu aceno é como aspergir partículas de ambrosia e maná dos deuses sobre as cabeças de seus adoradores.

“O resto é igual. Os gigantescos concertos musicais se parecem com as grandes concentrações religiosas. O público que fi ca do lado de fora de uma peça de teatro lotada, esperando que a Superclasse entre e saia. As multidões que vão aos estádios de futebol ver um bando de homens correndo atrás de uma bola. Ídolos. Ícones, porque se transformam em retratos semelhantes às pinturas que vemos nas igrejas, e são cultuados nos quartos de adolescentes, donas de casa, e até mesmo nos escritórios de grandes executivos de indústria, que invejam a celebridade apesar do imenso poder que possuem.

“Existe uma única diferença: nesse caso, o público é o juiz supremo, que hoje aplaude e amanhã quer ver algo terrível sobre seu ído-lo na primeira revista de escândalos. Assim podem dizer: ‘Coitado.

Ainda bem que não sou como ele.’ Hoje adoram, e amanhã apedre-jam e crucifi cam sem qualquer sentimento de culpa.”

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1:37 PM

Ao contrário de todas as moças que haviam chegado naquela ma-nhã para o trabalho, e que procuram afastar o tédio das cinco horas que separam a maquiagem e o penteado do momento do desfi le com seus iPods e telefones celulares, Jasmine tem os olhos cravados em mais um livro. Um bom livro de poesias:

Em duas partiu-se a estrada num dourado bosque E a lamentar as duas não poder trilhar

e ser um só viajante, por um tempo ali estive a olhar para uma delas até onde num declive em meio ao arvoredo eu a via se dobrar.

Segui pela outra então, bastante equivalente, mas a exercer talvez apelo mais intenso

por de relva ser coberta e de uso estar carente; ainda que por ambas passasse muita gente

e a seus leitos fosse o dano igualmente extenso E ao ver que nas manhãs sobre ambas haveria leito de folhas por passo algum enegrecido.

Oh, a primeira deixei para outro dia!

mas ciente que uma via nos leva a outra via, suspeitei não lá voltar tendo uma vez partido.

Estarei dizendo num suspiro meu

Em tempos e lugares de distância imensa

Em duas partiu-se num bosque a estrada, e eu...

Eu escolhi a que menos gente percorreu

e foi isso o que fez toda a diferença.

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Escolhera a estrada menos percorrida. Isso custara um preço alto, mas valeu a pena. As coisas chegaram no momento certo. O amor apareceu quando mais precisava dele — e continuava até hoje. Fazia seu trabalho por ele, com ele, para ele.

Melhor dizendo: para ela.

Jasmine na verdade se chama Cristina. No seu currículo consta que tinha sido descoberta por Anna Dieter em uma viagem ao Quênia, mas evitava propositadamente maiores detalhes sobre o caso, deixando no ar a possibilidade de uma infância sofrida e faminta, no meio de confl itos civis. Na realidade, apesar de sua cor negra, havia nascido na tradicional cidade de Antuérpia, na Bélgica