— fi lha de pais foragidos dos eternos confl itos entre as tribos hútus e tútsis, em Ruanda.
Aos 16 anos, em um fi nal de semana que acompanhava a mãe para ajudá-la em mais um dos intermináveis trabalhos de faxina, um homem se aproximou, pediu licença, e apresentou-se como fotógrafo.
— Sua fi lha é de uma beleza única — disse. — Gostaria que pudesse trabalhar comigo como modelo.
— O senhor está vendo esta bolsa que carrego? Aqui está material de limpeza; trabalho dia e noite para que ela possa freqüentar uma boa escola e ter um diploma no futuro. Tem apenas 16 anos.
— É a idade ideal — disse o fotógrafo, estendendo o cartão para a moça. — Se mudar de idéia, me avise.
Continuaram a caminhar, mas a mãe notou que a fi lha guardara o cartão.
— Não acredite. Esse não é o seu mundo; tudo que desejam é deitar-se com você.
Não era preciso o comentário — embora as meninas de sua classe sempre morressem de inveja, e os rapazes fi zessem de tudo para levá-la a uma festa, tinha consciência de suas origens e seus limites.
Continuou não acreditando quando a mesma coisa aconteceu pela segunda vez. Acabara de entrar em uma sorveteria quando uma 1 2 2
mulher mais velha comentou sua beleza, e disse que era fotógrafa de moda. Agradeceu, aceitou o cartão, e prometeu que telefonaria — o que não tinha o menor plano de fazer, embora aquele fosse o sonho de todas as moças de sua idade.
Como nada acontece apenas duas vezes, três meses depois ela estava olhando uma vitrine de roupas caríssimas, quando uma das pessoas saiu e veio em sua direção.
— O que você faz, menina?
— O que eu farei, deveria ser sua pergunta. Vou me formar como veterinária.
— Está no caminho errado. Você não gostaria de trabalhar para a gente?
— Não tenho tempo para vender roupas. Quando posso, trabalho para ajudar minha mãe.
— Não estou sugerindo que venda nada. Gostaria que fi zesse uns ensaios fotográfi cos com a nossa coleção.
E aqueles encontros seriam apenas boas lembranças do passado, quando estivesse casada, com fi lhos, realizada em sua profi ssão e no amor, se não fosse por um episódio que aconteceria poucos dias depois.
Estava com vários amigos em uma boate, dançando e contente por estar viva, quando um grupo de dez rapazes entrou aos berros.
Nove deles tinham bastões em que haviam incrustado lâminas de barbear, e gritavam para que todos se afastassem. O pânico imediatamente instalou-se, as pessoas corriam, Cristina não sabia exatamente o que fazer, embora seu instinto pedisse para que fi casse imóvel, e olhasse para o outro lado.
Mas ela não conseguiu mover a cabeça, viu quando o décimo rapaz se aproximou de um de seus amigos, tirou um punhal do bolso, agarrou-o por trás, e o degolou ali mesmo. Assim como chegou, o grupo saiu — enquanto o resto das pessoas gritava, corria, sentava-se no chão e chorava. Alguns poucos se aproximaram da vítima para 1 2 3
tentar socorrê-lo, mesmo sabendo que já era tarde demais. Outros simplesmente olhavam a cena em estado de choque, como Cristina.
Conhecia o rapaz assassinado, sabia quem era o assassino, qual o motivo do crime (uma briga que tinha acontecido em um bar pouco antes de terem ido para a boate), mas parecia fl utuar nas nuvens, como se tudo não passasse de um sonho, e daqui a pouco estaria acordada, suando em bicas, mas contente em saber que os pesadelos têm hora para terminar.
Não era um sonho.
Em poucos minutos estava de volta a terra, gritando para que alguém fi zesse alguma coisa, gritando para que ninguém fi zesse nada, gritando sem saber por que, e seus berros pareciam deixar as pessoas mais nervosas ainda, o lugar se transformara em um pandemônio total, a polícia acabara de entrar com armas na mão, paramédicos, detetives que alinharam todos os jovens em uma parede, começaram a interrogar imediatamente, pedir os documentos, os telefones, os endereços. Quem tinha feito aquilo? Qual a razão? Cristina não conseguia dizer nada. O cadáver, coberto por um lençol, foi retirado.
Uma enfermeira forçou-a a tomar um comprimido, explicando que não poderia dirigir de volta para casa, devia pegar um táxi ou um meio de transporte público.
No dia seguinte bem cedo, o telefone de sua casa tocou. A mãe tinha resolvido passar o dia junto com sua fi lha, que parecia estar au-sente do mundo. A polícia insistiu em falar diretamente com ela — devia apresentar-se numa delegacia antes do meio-dia e procurar certo inspetor. A mãe recusou. A polícia ameaçou: não tinham escolha.
Chegaram na hora marcada. O inspetor queria saber se conhecia o assassino.
As palavras da mãe ainda ressoavam em sua cabeça: “Não diga nada. Somos imigrantes, somos negros, eles são brancos, eles são belgas. Quando saírem da prisão, virão atrás de você.”
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— Não sei quem foi. Nunca vi antes.
Sabia que, ao dizer isso, estava perdendo por completo seu amor pela vida.
— Claro que sabe — retrucou o policial. — Não se preocupe, nada vai acontecer com você. Quase todo o grupo já está preso, precisamos apenas de testemunhas para o julgamento.
— Não sei de nada. Estava longe quando isso aconteceu. Não vi quem foi.
O inspetor balançou a cabeça, desesperado.
— Terá que repetir isso no tribunal — disse. — Sabendo que o perjúrio, ou seja, mentir diante do juiz, pode acarretar uma pena de prisão tão grande como a dos assassinos.
Meses depois, era convocada para o julgamento; os rapazes estavam todos ali, com seus advogados, e pareciam continuar se divertindo com a situação. Uma das moças presentes na festa apontou o criminoso.
Chegou a vez de Cristina. O promotor pediu que identifi casse a pessoa que tinha degolado seu amigo.
— Não sei quem foi — repetiu.
Era negra. Filha de imigrantes. Estudante com bolsa de estudos do governo. Tudo que desejava agora era recuperar a vontade de viver, pensar que tinha um futuro. Tinha passado semanas olhando o teto do quarto, sem vontade de estudar, de fazer nada. Não, aquele mundo onde tinha vivido até agora não mais lhe pertencia: aos 16 anos, aprendera da pior maneira possível que era absolutamente incapaz de lutar pela sua própria segurança — precisava sair de An-tuérpia de qualquer maneira, viajar o mundo, recuperar sua alegria e suas forças.
Os rapazes foram soltos por falta de provas — precisariam de duas testemunhas para sustentar uma acusação e conseguir que os culpados pagassem pelo crime. Na saída do tribunal, Cristina telefonou para os números nos dois cartões de visita que os fotógrafos 1 2 5
lhe haviam dado, e marcou uma hora. Dali foi direto para a loja de alta-costura, onde o proprietário viera falar com ela.
Não conseguiu nada — as vendedoras diziam que o dono tinha diversas outras espalhadas pela Europa, era ocupadíssimo, e não estavam autorizadas a dar seu telefone.
Mas os fotógrafos têm memória; sabiam quem havia telefonado, e logo marcaram encontros.
Cristina voltou para casa e comunicou a decisão à sua mãe. Não pediu, não tentou convencê-la, simplesmente disse que queria deixar a cidade para sempre.
E sua única oportunidade era aceitar o trabalho de modelo.
De novo Jasmine olha à sua volta. Ainda faltam três horas para o desfi le, e as modelos comem salada, bebem chá, conversam umas com as outras sobre aonde iriam depois. Vinham de diversos países, tinham aproximadamente a sua idade — 19 anos — e deviam estar preocupadas com apenas duas coisas: conseguir um novo contrato naquela tarde, ou descobrir um marido rico.
Conhece a rotina de cada uma: antes de dormir, usam vários cremes para limpar os poros e conservar a pele hidratada — com isso viciando desde cedo o organismo a depender de elementos externos para manter a tonicidade ideal. Acordam, massageiam o corpo com mais cremes, mais hidratantes. Tomam uma xícara de café preto, sem açúcar, acompanhada de frutas com fi bras — de modo que os alimentos que vão ingerir durante o dia passem rapidamente pelos intestinos. Fazem algum tipo de exercício antes de sair para buscar trabalho — geralmente alongam os músculos. Ainda é muito cedo para ginástica, ou seus corpos terminarão ganhando contornos masculinos. Sobem na balança três a quatro vezes por dia — a maioria viaja com uma, porque nem sempre estão hospedadas em hotéis, mas em quartos de pensão. Entram em depressão por causa de cada grama a mais que o ponteiro acusa.