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Suas mães as acompanham quando é possível, porque a maioria tem entre 17 e 18 anos. Jamais confessam que estão apaixonadas por alguém — embora quase todas estejam — já que o amor faz com que as viagens sejam mais longas e mais insuportáveis, e desperta nos namorados a estranha sensação de que estão perdendo a mulher (ou menina?) amada. Sim, pensam em dinheiro, ganham uma mé-
dia de 400 euros por dia, o que é um salário invejável para alguém que muitas vezes sequer completou a idade mínima que permita ter uma carteira de habilitação e dirigir um automóvel. Mas o sonho vai muito além: todas estão conscientes de que em breve serão ultrapas-sadas por novos rostos, novas tendências, e precisam urgentemente mostrar que o talento vai além das passarelas. Vivem pedindo às suas agências que consigam um teste, de modo que possam mostrar que são capazes de trabalhar como atrizes — o grande sonho.
As agências, claro, dizem que vão fazer isso, mas que devem esperar um pouco, estão começando suas carreiras. Na verdade, não têm nenhum contato fora do mundo da moda, ganham uma boa porcentagem, concorrem com outras agências, o mercado não é tão gigantesco assim. É melhor arrancar tudo que for possível agora, antes que o tempo passe e a modelo cruze a perigosa barreira dos 20
anos — quando sua pele estará destruída pelo excesso de cremes, seu corpo viciado em alimentação com baixo teor de calorias, a mente já sendo afetada pelos remédios para inibir o apetite, que terminam por deixar o olhar e a cabeça completamente vazios.
Ao contrário do que diz a lenda, pagam suas despesas — passagem, hotel, e as saladas de sempre. São convocadas pelos assistentes de estilistas para fazer o que chamam de casting, ou seja, a seleção que irá enfrentar a passarela ou a sessão de fotos. Neste momento, estão diante de pessoas invariavelmente mal-humoradas que usam o pouco poder que têm para extravasar as frustrações diárias, e jamais dizem uma palavra gentil ou encorajadora: “horrível” é geralmente o comentário mais escutado. Saem de um teste, vão para o próximo, 1 2 7
agarram-se a seus celulares como se fossem uma tábua de salvação, a revelação divina, o contato com o Mundo Superior em que sonham crescer, projetar-se além dos muitos rostos bonitos, e se transformar em estrelas.
Seus pais se orgulham da fi lha que começou tão bem, e se arrepen-dem de terem comentado que eram contra aquela carreira — afi nal de contas, estão ganhando dinheiro e ajudando a família. Seus namorados têm crises de ciúmes, mas se controlam, porque faz bem ao ego estar com uma profi ssional da moda. Seus agentes trabalham ao mesmo tempo com dezenas de outras moças da mesma idade e com as mesmas fantasias, e têm as respostas certas para as perguntas de sempre: “Não seria possível participar da Semana de Moda de Paris?” “Não acha que tenho carisma sufi ciente para tentar algo no cinema?” Suas amigas as invejam secreta ou abertamente.
Freqüentam todas as festas para que são chamadas. Se comportam como se fossem muito mais importantes do que são, mas no fundo sabem que se alguém conseguir atravessar a barreira de gelo artifi cial que criam em torno de si, esta pessoa será bem-vinda. Olham os homens mais velhos com uma mistura de repulsa e atração — sabem que no bolso deles está a chave para um grande salto, e ao mesmo tempo não querem ser julgadas como prostitutas de luxo. São sempre vistas com um copo de champagne nas mãos, mas isso é apenas parte da imagem que desejam passar. Sabem que o álcool tem elementos que podem afetar o peso, de modo que a bebida preferida é água mineral sem gás — o gás, embora não afete o peso, tem conseqüências imediatas sobre o contorno do estômago. Têm ideais, sonhos, dignidade, embora tudo isso vá desaparecer um dia, quando não conseguirem disfarçar mais as marcas precoces de celulite.
Fazem um pacto secreto consigo mesmas: jamais pensar no futuro. Gastam grande parte do que ganham em produtos de beleza que prometem a juventude eterna. Adoram sapatos, mas são caríssimos; mesmo assim, de vez em quando se dão ao luxo de comprar os me-1 2 8
lhores. Conseguem vestidos e roupas com amigos pela metade do preço. Vivem em pequenos apartamentos com pai, mãe, irmão que está fazendo faculdade, irmã que escolheu uma carreira de bibliotecária ou cientista. Todos imaginam que ganham uma fortuna, e vivem lhe pedindo dinheiro emprestado. Emprestam, porque querem parecer importantes, ricas, generosas, acima dos outros mortais.
Quando vão ao banco, o saldo da conta está sempre em vermelho e o limite do cartão de crédito, estourado.
Acumularam centenas de cartões de visita, encontraram homens bem-vestidos com propostas de trabalho que sabem ser falsas, ligam de vez em quando apenas para manter o contato, sabendo que talvez algum dia precisem de ajuda, mesmo que essa ajuda tenha um preço.
Todas já caíram em armadilhas. Todas já sonharam com o sucesso fácil, para logo entender que isso não existe. Todas já sofreram, aos seus 17 anos, inúmeras decepções, traições, humilhações e, mesmo assim, continuam a acreditar.
Dormem mal por causa dos comprimidos. Escutam histórias sobre anorexia — a doença mais comum no meio, uma espécie de distúrbio nervoso causado pela obsessão com o peso e com a aparência, que termina educando o organismo a rejeitar qualquer tipo de alimento. Dizem que isso não acontecerá com elas. Mas nunca notam quando os primeiros sintomas se instalam.
Saíram da infância diretamente para o mundo do luxo e do glamour, sem passar pela adolescência e pela juventude. Quando lhes perguntam quais os planos para o futuro, têm sempre a resposta na ponta da língua: “Faculdade de fi losofi a. Estou aqui apenas para poder pagar meus estudos.”
Sabem que não é verdade. Melhor dizendo, sabem que existe alguma coisa que soa estranha na frase, mas não conseguem identifi car.
Querem mesmo um diploma? Precisam desse dinheiro para pagar os estudos? Afi nal de contas, não podem se dar ao luxo de freqüentar 1 2 9
uma escola — há sempre um teste pela manhã, uma sessão de fotos à tarde, um coquetel antes que a noite desça completamente, uma festa em que precisam estar presentes para serem vistas, admiradas, desejadas.
Para as pessoas que as conhecem, vivem uma vida de contos de fada. E, durante um certo período, elas também acreditam que esse é realmente o sentido da existência — têm quase tudo que sempre invejaram nas moças que apareciam em revistas e anúncios de cos-méticos. Com um pouco de disciplina, são inclusive capazes de guardar algum dinheiro. Até que, através do exame diário e minucioso da pele, descobrem a primeira marca do tempo. A partir daí, sabem que é apenas uma questão de sorte antes que o estilista ou o fotógrafo note a mesma coisa. Seus dias estão contados.
Eu escolhi a que menos gente percorreu
e foi isso o que fez toda a diferença.
Em vez de voltar para seu livro, Jasmine levanta-se, enche uma taça de champagne (sempre é permitido, e raramente usado), pega um cachorro-quente, e vai até a janela. Fica ali em silêncio, olhando o mar. Sua história é diferente.
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1:46 PM
Acorda suado. Olha o relógio na cabeceira da cama, vê que dor-miu apenas 40 minutos. Está exausto, está assustado, em pânico.
Sempre se julgara incapaz de fazer mal a quem quer que fosse, e terminara matando duas pessoas inocentes aquela manhã. Não era a primeira vez que destruía um mundo, mas sempre tivera boas razões para isso.